Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e agora… o Papa Francisco: nos últimos 50 anos, todos viajaram do Vaticano com destino a território português e, desta vez, o Papa Francisco tem encontro marcado em Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude, que acontece no início de agosto. Mas houve em tempos um Papa, muitas vezes esquecido, que não era um mero turista nesta cidade, fazia dela casa.
Na verdade, tudo aponta para que aqui tenha nascido: o seu nome é Pedro Julião, também conhecido como Pedro Hispano, e coroado como Papa João XXI.

“Percebemos que as suas origens estão enraizadas na cidade de Lisboa”, começa por explicar o historiador Armado Norte, autor da biografia “João XXI – O Papa Português”. Um papa do século XIII que foi também professor, médico e filósofo, sempre polémico… e azarado.
Morreu em circunstâncias misteriosas, com o abatimento de um teto do Palácio de Viterbo.
A Lisboa de Pedro Julião
É certo que Pedro Julião exerceu funções na Sé de Lisboa. Quanto à sua juventude, está envolta em algum mistério: uma hipótese coloca-o na esfera de uma família lisboeta importante, com alguma fortuna pessoal; outra especula que o seu apelido “São Julião” está ligado à Igreja Paroquial de São Julião, em Santa Maria Maior.
“A principal pista e aquela que tem mais solidez é a que dá conta de alguém que é de uma família lisboeta, e que faz o seu percurso na Sé”, diz Armando Norte.

Mas que Lisboa é esta onde Pedro Julião terá crescido?
Há que recuar ao tempo da Reconquista Cristã para perceber melhor. “Lisboa não era uma cidade muito importante nessa época”, explica Armando Norte. Nessa altura, Guimarães, a capital do reino, e Braga, seriam as principais cidades, com Coimbra a crescer, roubando o estatuto a Guimarães em 1131.
Mas, apesar de não estar no topo da hierarquia, Lisboa sempre tivera uma importância económica, sobretudo pela sua localização, com o rio Tejo perto das planícies, onde havia muito produção agrícola. “Lisboa funcionava como uma placa giratória de transações, para se importar e exportar mercadorias.”

Os reis estavam a despertar para a importância desta cidade. E é no reinado de D. Afonso III, contemporâneo do Papa João XXI, que ascende a capital. “No reinado de Afonso III, Lisboa é uma cidade em crescente desenvolvimento, onde se passam a concentrar os principais instrumentos da Coroa, com uma chancelaria onde se emitem os documentos régios”.
É nesse ambiente que cresce Pedro Julião, que terá estudado na escola anexa à Sé de Lisboa, que preparava os jovens eclesiásticos, até partir para a universidade em Paris, onde terá privado com personalidades como Alexandre de Hales, Lambert de Auxerre, João de Parma, São Boaventura, Santo Alberto Magno, Santo Tomás de Aquino e Roger Bacon.
A tensão com o rei e a amizade com Gregório X
Pedro Julião, ou Pedro Hispano, daria aulas de medicina em Siena e viria a desempenhar funções importantes na Sé de Lisboa. “Terá começado como cónego de catedral, mas na documentação aparece designado como ‘deão da Sé’, que é uma posição muito importante.” Significa aquele que é responsável máximo de um órgão colegial da Igreja.

É nessa altura que se gere alguma expectativa de ser eleito como bispo de Lisboa. Mas é uma expectativa que se vê gorada quando o rei Afonso III escolhe o mestre Mateus para o cargo. Assiste-se, assim, à ruptura de uma relação que era outrora de grande proximidade.
Pedro não ganha essa corrida, mas ganha uma mais importante: é nomeado arcebispo de Braga. “O que equivale a ser a pessoa mais importante do clero português”, diz o historiador.
Pedro Julião torna-se assim um grande líder da Igreja Portuguesa, e começa a cimentar a sua carreira, recebendo o apoio do Papa Gregório X. Há quem até especule que Pedro Julião terá sido seu médico – uma informação que não é segura.
É dessa ascensão que resulta a sua nomeação a Papa João XXI.
Os oito meses como o Papa lisboeta
Mas que Papa foi João XXI, cujo pontificado durou apenas oito meses?
“O que sabemos é sobretudo informação que vem em crónicas de épocas posteriores”, diz Armando Norte. “Há quem veja o seu percurso como positivo, reconhecendo nele um grande sábio, e depois temos uma outra fação, que tem uma visão negativa do papa e do seu papado, acusando-o de ser mago.”
Mas, contrariamente ao que muitos afirmam, dizendo que o papa se recolhia para os seus trabalhos, sem se dedicar à vocação religiosa, os documentos oficiais desmentem-no.
Foram, na verdade, oito meses frutíferos, nos quais procurou conciliar os reis de França e de Castela-Leão, em luta pelo controlo da área de Navarra, sanando a questão do título do Imperador dos romanos, reivindicado por Carlos de Anjou, rei da Sicília, e por Rodolfo de Habsburgo, imperador do Sacro Império Germânico. Para além disso, interveio contra a turbulência entre comunas rivais como Perugia e Assis, e repôs a autoridade da Igreja perante a desobediência dos reis.
Como aconteceu com Afonso III. Significará vingança?
Um Papa polémico
Pedro Julião foi uma pessoa pessoa polarizada, que não reúne consensos.
Para muitos, exatamente pelo seu lado mais erudito. Um lado que fez com que Dante lhe concedesse um lugar no Paraíso na sua famosa obra, “A Divina Comédia”. “Dante não trata muito bem os Papas, muitos são levados para o inferno, mas coloca João XXI no paraíso graças a esse seu lado sábio.”
“…Pietro Spano, lo qual giú luce in dodici libelli (Pedro Hispano, a reluzir nos doze belos livros). Tendo como guia Tomás de Aquino, Dante encontra Pedro Hispano no quarto céu ou o céu do Sol, entre os teólogos. Foi o único Papa da sua época que Dante colocou no Paraíso.”
A obra filosófica e médica de Pedro Hispano (Papa João XXI), Sebastião Gusmão
E até a morte dele está também envolvida em polémica.
Pedro Julião decide ampliar o Palácio de Viterbo, onde o papa passa a viver para se afastar de Roma, uma cidade dificilmente defensável, exposta à luta entre os partidários do Papa e os partidários do Imperado.
Porém, o abatimento de um teto acaba por feri-lo gravemente, ferimentos que levam à sua morte. Multiplicam-se as teorias da conspiração de que foi o destino que ditou o seu fim: “Essa visão negativa do Papa leva a que se pense que morreu pois não estaria bem no seu lugar.”
A obra de Pedro Julião
Que o papa João XXI era um homem intelectual e sábio, isso parece ser um facto pacífico. Mas onde se geram grandes dúvidas é no que diz respeito à sua obra. Um problema que se deve sobretudo a três fatores: por um lado, “Pedro” era um nome muito comum na época, e portanto os textos que são atribuídos a “Pedro Hispano” podem muito facilmente não ser do Papa João XXI, mas de um outro Pedro.

Por outro, a natureza das obras que se discute serem deste papa é muito vasta. Há obras de filosofia, alquimia, medicina, teologia…
Por último, a maioria destas obras da Idade Média não estão assinadas, por muitas vezes serem um comentário sobre o trabalho de uma outra autoridade. Tudo isto torna difícil perceber que legado deixou Pedro Julião.
É mais ou menos consensual que terá escrito a obra “Summulae Logicales”, sobre a lógica aristotélica, e “Thesaurus pauperum”, um documento sobre diferentes tratamentos médicos. Dois textos que foram escritos para públicos escolares, universitários, e que constituem a “obra de um sintetizador”. “São manuais de ensino que têm uma vida longa nas universidades”, reforça Armando Norte.
Há quem duvide que a autoria destas duas obras seja, de facto, do Papa João XXI, desse Pedro Julião que cresceu em Lisboa, e sobre o qual, na verdade, se sabe tão pouco.“Para mim, foi muito difícil escrever a biografia de João XXI exatamente por conta desses ‘ses”, resume o historiador.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

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