Da vida, não levo unanimidade. Bem tento explicar em que consistem os meus dias: acordo sempre com vontade de dormir, ligo o ar condicionado antes de pôr as lentes de contacto, ganho coragem com uma tosta de abacate, meto-me no ginásio para aguentar bem os lanches, tomo um banho rápido com o gel mais barato e sigo em cima da mota para a Biblioteca Nacional. Ao fim da tarde, quando me expulsam, fecho o computador com pequenas coisas concluídas e uma grande que está sempre por concluir, parecendo até ter a proeza de, às vezes, conseguir andar para trás, e volto ao ninho.
Eu digo isto e a reacção nunca é indiferença: uns – poucos – sentem que eu cheguei ao cume da vida; os outros – quase todos – têm pena de mim. Bem lhes vejo os trejeitos, a forma como me perguntam a medo: “E passas os dias sozinha a escrever num computador?” A forma como a pergunta é feita esconde o que querem dizer: “Coitada…” Isto é mais ou menos um “Coitada, sem amigos, sem companhia, sem se mexer, sem falar, sem trocar conversa inútil com os colegas.” Quando explico que a minha vida é isto, até o faço com pudor: tenho sempre medo de atirar esta maravilha à cara de alguém forçado a conviver o dia todo.
Há não muito tempo, passei pelo tormento de trabalhar a full-time numa empresa tecnológica. O líder de equipa percebia tanto de liderança e gestão quanto eu de sistema digestivos de carapaus de corrida. As reuniões, ao invés de terem uma ordem de trabalhos, tinham cabeças comidas de quem não queria estar ali. As conversas lá dentro, em vez de se virarem para o trabalho, eram jogos de vídeo, comida deste ou daquele sítio, os copinhos do chefe aos sábados, os genitais da esposa de um deles no pós-parto. Era um tormento, mas era, ainda por cima, um tormento vezes dois: duas reuniões inúteis por dia, não raras vezes de uma hora para cima, de onde nada saía para alguém do cansaço mental e de experiência em teatro e fantochada. O feedback, dizia o líder da equipa, era encorajado e apreciado, mas quando três ou quatro lhe dizíamos que, de cada vez que o blabla surgia, tínhamos vontade de arrancar um rim a ver se o INEM nos safava, ele ria e continuava a gerir o seu clube de rapazes. Entre adultos, ainda havia actividades daquilo a que a modernidade chamou team building, ou seja, volta e meia, cada um de nós era forçado a olhar para várias imagens de mamíferos ruminantes bovídeos da sub-família Caprinae e a dizer que tipo de ovelha é que se sentia naquela tarde. Era como andar na creche, sendo forçado a ver os outros meninos todo o dia, enquanto um ou outro – os mais mentalmente sãos – se perguntava se os outros achavam mesmo graça ao circo. Enfim, eu nunca achei, lá me pirei – mesmo naquele momento em que ir a mais uma reunião inútil já me custava mais do que ir ao bloco operatório – e a minha vida a partir daí voltou-se para a solidão.
Que maravilha tem sido. Agora não há sorrisos falsos, não há amigos a fingir, não há conversa para encher tempo e chouriços. Agora chego à biblioteca e escrevo se tiver que escrever, trabalho se tiver que trabalhar, e tanto na prosa como na vida recuso-me a engonhar. Volta e meia, ainda penso naqueles desgraçados que fingem que são amigos uns dos outros, neste pequeno jogo à portuguesa em que uma empresa finge que é uma família, em que um colega finge que é um padrinho de casamento.
Fingir simpatia é uma coisa que dá luta e rouba a energia. Um escritor virado para uma página, tentando atirar-se por essa janela sem ter a que se agarrar, não pode gastar os músculos com coisas tão inúteis. Assim sendo, a escrita é a batalha diária em que meter as fichas todas. Bastando-se, já só tem de vencer o dia-a-dia: resistir, por exemplo, a este sol que agora Lisboa tem. De casa até à biblioteca, são 31 graus em cima da cabeça. Quando lá se chega, ainda que as cadeiras sejam boas, que o ar condicionado também esteja ligado, os corpos quase se derramam em cima da mesa, também eles derretidos. Quem diz que para a escrita basta papel e uma caneta não sabe o que é a vida – não sabe que é preciso também que o ar não seque a boca. E não sabe, claro, que agora isto só vai a MacBook e carregador. E quem diz que se pode escrever em qualquer lado esquece-se de dizer que qualquer lado tem de ter uma temperatura que não seja a adequada a famílias de camelos.
Assim sendo, lá me sento todos os dias no centro de Lisboa. As paredes do edifício protegem do calor que há à volta, mas quando ali chego já o calor se infiltrou em mim. Olhando para o lado, vejo um desgraçado tão desgraçado quanto eu, também ele com vontade de pousar a cabeça nos livros até o Verão passar. Pior do que nós, poderá dizer qualquer um, estará muita gente. Estarão, na verdade, quase todos. Estará qualquer pessoa que tenha de ir para um escritório, que não trabalhe com cadeiras adequadas à lombar, que tenha de erguer pesos, cheirar óleo frito, levantar-se às quatro da manhã, lixar a cervical, inventar todos os dias só para ter meia dúzia de euros que lhe permitam comprar pão – ou que tenha, por exemplo, de tomar o pequeno-almoço com os colegas. Nada disso nos impede de dizer o óbvio: Lisboa é muito linda, mas, em Julho, os pinguins de Ushuaia é que sabem viver bem.
*Esta cronista escreve com o antigo Acordo Ortográfico

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição: