Para um português, a palavra “autoclismo” nunca terá o mesmo tom dramático de quando é ouvida pelo destreinado ouvido brasileiro. Para nós, o autoclismo soa como algo bem mais grave que o trivial gesto de pressionar o botão, acionar uma alavanca, puxar a cordinha ou, com se diz lá no Brasil, dar a descarga.

Talvez seja por autoclismo parecer com cataclismo, um termo que desde os tempos bíblicos é sinónimo da ira divina.

O prefixo “auto” só piora as coisas.

O autoclismo sugere um cataclismo pessoal, particular, um autoclismo para chamar de seu, como se Deus em vez de destruir o planeta através de terramotos, enchentes, políticos de extrema-direita e outros desastres naturais, desejasse única e exclusivamente o seu fim.

E se na solidão da casa de banho encarar os efeitos de um reles rissol fora do prazo pode ser um martírio, imagine ter de enfrentar a ira de Deus.

A casa de banho, por sinal, é outra versão curiosa ao ouvido zuca, a tradução portuguesa para o nosso querido banheiro, derivada do francês salle de bains ou do inglês water closet, essa última responsável pelo mundialmente famoso acrónimo W.C.

Para os portugueses, o banheiro não faz sentido, pois cá ainda levam a sério o emprego do sufixo “eiro” para designar às profissões. O banheiro era em priscas eras, portanto, o profissional que cuidava do banho de mar das pessoas, o nosso salva-vidas.

Hoje em dia, a profissão de banheiro mudou de nome em Portugal, foi gourmetizado e agora é conhecida como “nadador salvador”, talvez para se evitar que algum brasileiro incauto busque por um banheiro, confunda-o com uma retrete e faça-lhe chichi aos pés.

A palavra retrete, por sinal, também pode causar confusões.

A primeira vez que ouvi a palavra retrete pensei tratar-se de uma novidade do carnaval baiano, como um dia foi a micareta, com os trios-elétricos seguidos por foliões trajados em abadás coloridos, descendo a avenida, contorcendo-se ao ritmo da retrete.

O pior é que faz até sentido, pois quem nunca teve que se contorcer numa longa fila da casa de banho, aflito em aliviar-se na retrete?

É claro que os brasileiros não se podem queixar da terminologia escatológico-sanitária dos portugueses. Retrete é um pouco bizarro, é facto, mas para o correspondente brasileiro a “privada” não fica atrás.

É como se o capitalismo não perdoasse nem o metabolismo humano e evacuar, antes uma função biológica pública, um direito de todos, um alívio comunista portanto, tivesse sido subitamente privatizado pela aflição capitalista.

Pior era a minha avó, que chamava a privada de “aparelho”, como se o nosso banheiro fosse o refúgio de uma célula revolucionária. Ainda criança, vez ou outra, ouvia no rádio ou na televisão que a polícia desmantelara um “aparelho” e prendera quem lá estava a conspirar contra os militares.

Ouvia também falar em escabrosas torturas e em desaparecidos que nunca mais apareciam.

Por isso, sempre que minha avó pedia “Faça silêncio que o seu avô está no aparelho”, obedecia de pronto, temeroso que o mínimo ruído pudesse revelar as coordenadas do esconderijo e a polícia política levasse o velho subversivo.

Certa vez, porém, a porta da casa de banho estava aberta e, inadvertidamente, flagrei o meu avô no aparelho. Para a minha surpresa – e um bocadinho de decepção – não havia um conluio em atividade no banheiro lá de casa.

Em vez de homens barbados conspirando entre sussurros em volta de um mapa aberto sobre o bidê , a lubrificarem as armas de fogo com sabão líquido, o meu avô estava placidamente sentado na privada, com o pijama nos tornozelos, lendo as notícias do futebol.

Ao ser flagrado no aparelho pelo neto, o meu avô assustou-se e deu uma breve pista de como reagiria à uma verdadeira invasão da polícia política: contraiu o esfíncter e soltou um bravio pum, antes de heroicamente acionar o autoclismo.

Cada um luta com as armas que tem.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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