Ilustração: Maria Pereira/Lisbon School of Design

Quando pensamos nas entradas e saídas de Lisboa, há uma via à vista de todos, pisada por milhares de pessoas todos os dias, mas que caiu no esquecimento. E é pena. Maltratada, retalhada e secundarizada no último século e meio, talvez há mais tempo (o terramoto tem costas largas), foi morrendo aos poucos e acabou colhida no apeadeiro de Entrecampos. Por fado e facilidade, chamemos-lhe a EN2 lisboeta.

Não sendo eu um encartado olisipógrafo, não posso atestar que foi por aqui que Dom Afonso Henriques conseguiu enganar os mouros e tomar o castelo de São Jorge. Na verdade, uma breve pesquisa online quase deita por terra esta minha teoria. Mesmo assim, o facto de começar no largo com o nome do homem que se deixou entalar para os seus amigos lusitanos entrarem no castro mourisco, numa das suas passagens mais estreitas e dissimuladas, dá que pensar. 

O certo é que subindo pelas ruas de São Lázaro, Gomes Freire, Dona Estefânia, Dona Filipa de Vilhena, Arco do Cego, Campo Pequeno, Entrecampos e Campo Grande, acabamos às portas de Lisboa e à entrada da alameda das Linhas de Torres. É um conjunto perfeito que ladeia a Amirante Reis e a Av. da República. Confesso que até mudar para Alvalade, nunca tinha reparado nesta extraordinária via que atravessa a cidade– talvez por ter crescido literalmente de costas voltadas para a dita via.  

Tal como a sua congénere nacional, hoje apelidada com todo o hype turístico de “route 66 portuguesa” e criada para ligar o país de norte a sul, de Chaves a Faro, a EN2 lisboeta é um espelho da cidade diversa por onde se espraia sem pedir licença.

Se na zona de São Lázaro ainda se sente uma vibe mais popular e multiétnica, mais para cima, na zona do Arco do Cego e da Casa da Moeda, a localização e a especulação reforçaram-lhe o cariz burguês e cosmopolita, que sempre teve e agora acentuou. O sítio perfeito para viver e morrer, não fossem os preços exorbitantes do metro quadrado nessa zona.     

Tendo vivido nas imediações desta nossa EN2 por diversas vezes ao longo da vida, foi só à beira dos quarenta que comecei a pensar na sua integralidade enquanto estrada (outrora) real. É verdade que os sinais estavam lá todos, mas só comecei a reparar neles quando dei início às minhas corridas e depois passeios matinais: carris de elétricos que terminavam abruptamente em lugar nenhum, casas de pasto em ruas interrompidas por linhas de comboios ou um Campo Grande totalmente assimétrico, com igrejas e casario setecentista de um lado (um dos últimos exemplares foi demolido durante a pandemia; felizmente, ainda se mantém de pé um pouco mais à frente o Antigo Retiro do Quebra Bilhas) e vivendas e palacetes novecentistas do outro. Contudo, a prova deste passado glorioso está no motivo do painel de azulejos no antigo fontanário de Entrecampos.  

Além do mosaico arquitetónico, cultural e sociológico evidente ao longo dos fragmentos que compõem o seu itinerário, a EN2 lisboeta pode ser vista, de alguma forma, como uma metáfora para o percurso de vida dos muitos lisboetas… os que cá nasceram e os que a adotaram como sua.

Tal como o traçado desta antiga Via Ápia hoje esquecida, também as nossas vidas acontecem aos ziguezagues, com avanços e recuos, interrupções, desvios, paragens bruscas e rotundas aqui e ali. 

Pessoalmente, calcorreei-a em diferentes pontos e momentos ao longo das últimas décadas: na infância e no início da adolescência, cruzei-a todos os dias perto do Palácio Galveias e das antigas ruínas da fábrica Lusitânia, hoje o mastodôntico edifício “à Ceausescu” da Caixa, para ir para a primária e, depois, para o ciclo; no final da adolescência e entrado na idade adulta, quando morei na Almirante Reis, percorri-a para tratar uma ou outra maleita ou dar sangue no São José e foi num edifício da São Lázaro que fui contratado pela primeira vez para trabalhar como roadie em espetáculos musicais. 

Já adulto, e porque tinha um carro velho e bons braços, ajudei a minha irmã a carregar as suas grandes telas para as exposições que ia tendo em Lisboa, pelo menos duas delas na galeria ao início da rua Gomes Freire, a Monumental. Mais tarde, com um primeiro filho que vivia com bronquiolites desde que o primeiro mês de idade, passei muitas madrugadas no hospital pediátrico da Estefânia, um pouco mais acima. 

Ora, apesar desta epifania viária me ter assaltado o espírito há já alguns anos, confesso que ainda não me fiz ao caminho para trilhar a nossa protagonista de lés a lés.

Costuma dizer-se que, a subir, todos os santos ajudam. No meu caso, diria que tem tudo para correr bem, até porque o caminho é sempre a descer a partir de Alvalade.

E se há coisa que não falta na EN2 lisboeta e na nossa cidade são santos padroeiros disto e mais aquilo. Pois bem. Aqui chegado, talvez esteja na hora de fazer como Lázaro, o eleito para a toponímia do primeiro troço desta antiga estrada real: levanta-te e anda. 


*Pedro Salazar nasceu na freguesia de Arroios a quatro meses do 25 de abril, mas já viveu um pouco por toda a cidade (Avenidas Novas, Santa Catarina, Almirante Reis, Santo António, Campo de Ourique e, desde 2010, em Alvalade). Licenciado em Economia pelo ISEG, foi produtor de espetáculos, jornalista e é, há mais de vinte anos, consultor de comunicação. Já viveu fora de Portugal, em Estocolmo e em Ljubljana, mas é em Lisboa que se sente em casa.


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4 Comentários

  1. Uma correção: a descer é que todos os santos ajudam!
    A subir, só um! Santo André que é… coxo!
    Pelo menos, desde miúdo (ui,à quanto tempo…) foi assim que aprendi.

  2. Actualmente essa estrada é servida pelo 760 até à Rua Gomes Freire, de seguida é servida pelo 767 até à Praça de Londres e sendo há ainda uma parte “Entre Campos” – Campo Pequeno e Campo Grande – que é então servida por uns quantos mais autocarros além do Metro.

  3. O texto é bastante fraco. Ninguém percebe porque é que um arruamento saindo de Lisboa para norte havia de lembrar a EN2.
    O ditado lopular é: para baixo todos os santos ajudam. Não para cima.
    Dizer que a saida de Lisboa a partir da zona que é hoje o Martim Moniz subia ao Campo de Santana carece de demonstração.
    Acabar a descrição sem referência à Calçada de Carriche, não faz qualquer sentido.
    Esquecer o percurso por Bemformoso, Anjos, Arroios até à Portela e Sacavém, de que há troços muito reconhecíveis, também não me faz sentido.

  4. muito interessante o artigo .Permitae acrescentar que eu como ciclista diário de Lx uso sempre essas vias antigas de entrada e saída do centro histórico para fora , as antigas hortas e fornecimento de bens a cidade . É a cidade que cresce como as camadas do Photoshop . Com o tempo vão se apagando e pisando as camadas iniciais mas sempre difíceis de esmagar totalmente ..não lhe chamo en2 ..” Mas as rugas da cidade ” Já mais outra No início havia duas fortes linhas de água até ao Rocio e e onde estão hoje às duassiores avenidas de saída do centro para o norte …e que no início das linhas do metro faziam os dois braços do Y Adoro Lisboa .Se desejar entre em contacto comigo para falarmos da nossa cidade

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