
Nas ruas de Lisboa está inscrita uma história oculta, de homens aristocratas que tinham encontros com soldados, no século XVII, de perseguição a homens gays e bissexuais no Estado Novo ou a primeira representação de um homem queer num romance europeu. Pelo menos é esta a história que Alex Pollard conta, na recém-criada tour Queer Lisbon Treasure Hunt que começa no Príncipe Real, desce pelo Bairro Alto, e propõe uma leitura queer da história de Lisboa.
Alex tem 60 anos, é do Reino Unido e, embora só viva em Lisboa com o parceiro há três anos, já visita a cidade frequentemente desde a década de 1990. Em 2019, tomou a decisão de mudar-se permanentemente. “Sou um exilado do Brexit”, brinca.
Da sua experiência em projetos relacionados com a comunidade LGBTQ+ e a saúde pública das pessoas seropositivas criou este projeto que arrancou no dia 7 de maio. Já vai na quarta edição e parte todos os domingos do Largo do Príncipe Real. O público são sobretudo de americanos e outros anglófonos LGBTQ+, tanto turistas como residentes recém-chegados à cidade que querem conhecê-la melhor.
A Lisboa do Barão de Lavos e do Gato Verde
Mais ou menos vinte pessoas, divididas em grupos de cinco, participam no peddy-paper que começa debaixo das árvores do Príncipe Real. A partir daí, são algumas horas de subidas e descidas pelo Bairro Alto.

Numa das primeiras paragens, o desafio é encontrar o antigo bar Gato Verde, o primeiro bar lésbico de Lisboa, aberto em 1976.
A tour também é um espelho das transformações que ocorreram na cidade desde essa altura: o Gato Verde, na rua Gustavo Matos Sequeira, entretanto mudou de nome para Memorial, e depois disso mudou de identidade ao longo dos anos, mantendo-se sempre um espaço LGBTQ+. Isto até 2023, ano em que se transformou num bar estilo speakeasy.

Por vezes, as paragens são prédios que aparentemente não têm nada para mostrar. Uma casa verde na rua da Rosa, por exemplo, é o local de ação do romance O Barão de Lavos, escrito por Abel Botelho em 1891. Segundo Alex, foi a primeira representação de um homem gay num romance europeu. Não é certo, mas certo é que conta a história fictícia de Sebastião, Barão de Lavos, que se apaixonou e viveu com o jovem Eugénio naquela casa.
A história não acaba bem (o Barão acaba arruinado e morto por delinquentes), e era o primeiro romance de uma série que tinha como nome Patologia Social, uma galeria de aberrações sexuais. Ou seja, é um romance homofóbico. Ainda assim é um fragmento importante de história queer, invisível a quem passa pelos bares da zona.
Segundo relatos da época a obra foi acolhida entre a admiração e a censura, mas é um fragmento importante de história queer, invisível a quem passa pelos bares da zona.
Há paragens mais curiosas, como o Jardim Botânico, que já teve um sinal da Câmara Municipal de Lisboa nos anos 1950 que anunciava multas aos homens que fossem encontrados “com a mão naquilo” ou “aquilo atrás daquilo”.
VEJA A HISTóRIA DE JOSEPHINE BAKER
Ou o Teatro da Trindade, onde a cantora, dançarina e espiã Josephine Baker esteve em palco. Ela, a primeira mulher negra sepultada no Panteão Nacional francês, que espiou para os Aliados em Lisboa era uma conhecida ativista dos direitos humanos, feminista e conhecida como bissexual. Também o restaurante Primavera, na Travessa da Espera, perto da Rua da Misericórdia, que ainda exibe uma foto da artista, quando lá almoçou.
“É uma forma de manter uma comunidade na cidade com outras pessoas queer”
As mais interessantes são as paragens que revisitam locais já conhecidos dos lisboetas e dos turistas.

É o caso da Igreja de São Roque, perto do Miradouro de São Pedro de Alcântara. Embora as outras tours habituais não o digam, e muito menos as placas na igreja, foi no altar da capela de São Roque que, em 1651, o Conde de Vila Franca foi apanhado em “relações íntimas” com vassalos, ou, em 1690, um tal de Diogo de Pinho foi encontrado com o Conde da Ericeira, no pátio da Igreja, a 21 de outubro, noite das Onze mil Virgens de Santa Úrsula.
Este trabalho de pesquisa desvenda uma história rica mas de difícil acesso. Foi possível através de fontes como o Museu do Aljube ou o historiador brasileiro Luiz Mott, da Universidade Federal da Bahia, que analisou documentos da Inquisição que comprovam histórias como as da Igreja de São Roque.



“Havia muitas coisas que queria encaixar aqui, mas que acabei por não integrar para não tornar a tour demasiado longa, e para me circunscrever a esta área da cidade. Por outro lado, também houve histórias que acabei por incluir mais tarde: como o edifício onde trabalharam as Três Marias nas Novas Cartas Portuguesas, que mesmo não sendo diretamente queer, continua a ser um exemplo de resistência a um sistema, ao patriarcado”, diz Alex.

A maioria dos participantes conheceu a tour através do Meetup, uma plataforma online para a promoção de projetos em grupo e hobbies.
É o caso de Joe, de Miami, que planeia mudar-se permanentemente para Lisboa. “É uma forma de mantermos um sentido de comunidade, não só com a cidade mas também com outras pessoas queer”, diz.
No final, os grupos reúnem-se para um quiz no bar de um hotel para homens LGBTQ+, onde há prémios para quem esteve mais atento. Mas é quando saímos à rua que sentimos o efeito do que acabámos de viver: que a história das pessoas LGBTQ+ é tão antiga como a de Lisboa e faz parte da cidade.
*Henrique Martins tem 24 anos e nasceu em Lisboa, onde já viveu em todas as linhas do metro. Licenciou-se em Ciências da Comunicação e a curiosidade pelo mundo fê-lo enveredar no jornalismo. Atualmente, é mestrando em jornalismo e vive entre Lisboa e Amesterdão. É colaborador na Mensagem de Lisboa.

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