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O maestro é uma espécie de treinador de futebol. Rodopia o pescoço diante da equipa, homens e mulheres que, concentrados, lhe imitam os gestos vigorosos, o balançar dos braços e pernas, o girar os ombros, aquecendo os músculos como os jogadores que por esses dias correram atrás de uma bola no Mundial do Catar.
A liga desses homens e mulheres, porém, é outra, mais importante e difícil.
A cena é o primeiro ato de mais um dia de ensaio do Alarido, o grupo coral feminista e LGBT de Lisboa que se reúne às quartas-feiras, no auditório da Junta de Freguesia de Campolide. Homens e mulheres empenhados em cantarem por uma causa, as cordas vocais a vibrarem, dando voz a letras e músicas, dando voz a uma luta.

Paulo Côrte Real é o capitão desta equipa. O lisboeta de 48 anos está entre os sopranos, contraltos, tenores e baixos treinados pelo maestro Tomás Larisch Frazer. Esteve lá desde a fundação do coro, como extensão natural das atividades da freguesia, quando capitaneava o projeto “Campolide da Igualdade”.

“O coro foi formado por pessoas que já tinham uma história de ativismo, não só pelas lutas LGBT, mas também feministas, pois são causas indissociáveis”, conta Paulo, com a voz grave e suave de um antigo soprano que com o tempo viu o timbre variar para a tessitura de “baixo”, mas sem nunca desafinar nos seus objetivos.
Paulo é um experiente jogador nos relvados das lutas pela igualdade. Já vestiu a camisola das equipas da ILGA, a mais antiga associação de intervenção lésbica, gay, bissexual, trans e intersexo de Portugal, além de atuar pela Amnistia Internacional, antes de defender as cores do projeto Campolide da Igualdade, berço do Alarido.
Um craque do ativismo que dispensa o protagonismo em nome do coletivo “apenas mais um entre os quinze” componentes do coro, reforçado também por estrangeiros, brasileiros, franceses e ingleses que, ao lado de portugueses, cantam para espantar os males causados pela desigualdade estrutural da sociedade.
Um jogador que aprendeu com a própria voz que a vitória às vezes se conquista com a amplitude dos sopranos, mas na maioria das vezes exige a consistência de um baixo.
Um repertório afinado com a causa
O aquecimento segue com os músculos do diafragma e da garganta. O maestro Tomás é exigente nos exercícios de respiração, no ar que entra e sai dos pulmões com força, seguidos pela extenuante sequência de i-ó-ó-ó e i-á-á-á executada pelos seus comandados, até que um a um, cada integrante perde o fôlego.
A partitura sobre as cadeiras contém as cifras de Titanium, de David Ghetta, uma das músicas de resistência das apresentações do coro, um repertório decidido sempre em conjunto, sempre no trabalho coletivo, mas pautado pelo tom político, para além dos fins estéticos e poéticos. Uma tarefa nem sempre fácil de realizar.

“As músicas pop raramente são criadas pensando nas causas que abraçamos, na luta pelos direitos das mulheres, no amor entre casais do mesmo sexo”, explica Paulo. “Procuramos sempre canções que enquadrem os nossos objetivos e espelhem o desejo de um modelo de vida para as mulheres e as pessoas LGBT na sociedade.”
Além de David Ghetta, transitam pelo repertório hits assinados por Madonna, George Michael e os ABBA, uma lista aberta também a acolher participações especiais como Amor e sexo, de Rita Lee, Let it go, de Demi Lovatto, banda sonora do filme Frozen, além da sempre laboriosa interpretação em francês da icónica Non, je ne regrette rien.
“Procuramos sempre canções que enquadrem os nossos objetivos e espelhem o desejo de um modelo de vida para as mulheres e as pessoas LGBT na sociedade.”
Paulo Côrte Real
Algumas delas figuraram no set da primeira apresentação do grupo, nos Santos Populares de Campolide, em 2019, quando o coro subiu ao palco para o, até agora, seu maior público. Justamente num evento marcado por um certo conservadorismo, onde o habitual é ouvir músicas “pimba”, pontuadas por situações de cunho sexista.
Uma apresentação bem acolhida pelos fregueses presentes no Arraial de Campolide. “Foi realmente marcante”, recorda Paulo. A ideia era aproveitar o bom arranque para engatar uma sequência regular de performances, mas pouco tempo depois a pandemia travou os planos e as vozes do Alarido silenciaram-se por alguns meses.
Cantar mais alto a partir de agora
Os ensaios voltaram de forma lenta em 2021 até voltarem à normalidade pré-pandemia no ano passado. A participação na Feira do Livro de Lisboa, em setembro, marcou a rentrée do Alarido às apresentações e a expetativa em 2023 é levar o coral para além das fronteiras portuguesas, a França, na Páscoa.
“Há um convite para realizarmos um intercâmbio com corais de França e Espanha, em Paris, durante o festival Equinoxe”, conta Paulo. Uma oportunidade para o Alarido trocar experiências com outros coletivos do género, já que em Portugal, ao contrário dos demais países europeus, os corais dedicados ao ativismo ainda são raros.
A dificuldade para a digressão passa por conseguir apoio financeiro, já que o Alarido não cobra pelas apresentações, uma fonte natural de rendimentos. “Oficialmente, não existimos como entidade”, explica, em tom de lamento, Paulo. A informalidade para já é uma limitação a que o coral receba mais convites.
“Somos uma estrutura com poucos custos. Em bom rigor, só temos o do caché do maestro, já que o local de ensaio é por conta da junta”, continua o capitão da equipa. “Mas vamos ter de pensar em algo mais estruturado, pois agora há os valores com passagens e hospedagens em França. A alternativa talvez seja um crowdfunding”, explica.
Para mobilizar a comunidade, Paulo reconhece que o trabalho do Alarido precisa ser mais conhecido entre os portugueses e aposta na divulgação através de entrevistas como a da Mensagem para isso. Há ainda o plano de intensificar as apresentações do coral, que hoje não chegam a uma dezena por ano.

A última apresentação de 2022, já com a intenção de angariar fundos para as atividades da próxima temporada e a viagem a França no equinócio, acontecerá em dezembro, justamente no solstício de inverno, no A Sala, um bar de tapas e vinhos vizinho à Assembleia da República, em São Bento.
Mas antes disso, é preciso esforço, treinar, suar, perder o fôlego, como os futebolistas do Mundial.
Com um pigarro, o maestro discretamente convoca Paulo e os demais componentes a voltar às partituras e aos i-ó-ó-ó e i-á-á-á. A partir de agora, nada de entrevistas, pois a voz de cada um deles já não lhes pertence. A cada acorde, o Alarido volta, bela e afinadamente, a cantar sob a batuta do ativismo.
Em nome de todas as vozes que a sociedade ainda teima em não escutar.
*Texto publicado originalmente a 20 de dezembro de 2o22

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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