Tarde de 12 de junho, o Largo do Salvador lotado e colorido, o perfume de sardinha, o som de uma música pimba no altifalante já rouco misturado com o riso alto de quem ignora o cansaço e o calor, com o suor a descer do rosto e a pele a brilhar.
Às sete em ponto, a pequena multidão espreme-se em frente às portas altas do Magalhães Lima, enfeitadas para os santos populares.
Pois é a hora de a Marcha de Alfama passar.
Quando os primeiros marchantes dão o ar de sua graça e em fila indiana cortam o largo para descer a Regueira rumo ao desfile, Alfama para, reverente e feliz, o tempo em suspensão, o calor dá uma trégua e até o altifalante se cala para que se ouçam os aplausos e os gritos de incentivo da pequena multidão, linda! linda! linda!.
Neste 12 de junho não será diferente.
“A Marcha de Alfama continua a ser o grande motor sentimental do bairro”, resume Ricardo Gonçalves Dias, autor do livro Marcha de Alfama, a história da força de quem canta (Edições Diário de Bordo), um alfamista que aos 28 anos mergulhou na quase centenária história das marchas do bairro onde nasceu, cresceu e segue a amar.

As 240 páginas são uma detalhada viagem na história de uma marcha que se mistura com a história de Alfama e dos desfiles dos santos populares, um património não só do bairro mas de Lisboa, a campeã das campeãs, 21 títulos conquistados nas 63 vezes em que se atribuiu um palmares a uma coletividade, desde o primeiro cortejo, em 1932.
A tradição de uma marcha em Alfama, porém, começou ainda antes, em 1928, então sob a responsabilidade da Academia Recreativa Leais Amigos, curiosamente hoje o lar da vizinha marcha de São Vicente. Entre 33 e 82, foi a vez da Sociedade Boa União abrigar os marchantes, até a mudança para o Centro Cultural Magalhães Lima, onde está até hoje.
O Magalhães Lima que recebe o lançamento do livro de Ricardo Gonçalves Dias no próximo dia 16, às 19h, antes de a marcha partir para o tradicional desfile pelas ruas de Alfama.

A força da mobilização popular em Alfama
Mais do que uma tradição, a Marcha de Alfama está no ADN de Ricardo.
“Sempre tive um parente, um tio, um avô, na comissão de organização da marcha. A minha irmã foi marchante e eu cheguei a ser mascote, em 1998”, conta Ricardo, mestrando em Ciência Política pelo ISCTE, político também de profissão, vogal de Cultura, Associativismo e Educação no executivo da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior.
O interesse pelos temas políticos serviu de base para a escrita do livro, um trabalho que transversalmente corta o fio histórico com a área de pesquisa académica do autor, reforçada no subtítulo da obra, na “força de quem canta”, estabelecendo uma relação de causa e efeito entre o popular, o engajamento dos moradores, e os desfiles da marcha.
Um recorte interessante dessa simbiose entre o bairro e a marcha está no capítulo 21, quando em 1969 a Marcha de Alfama não foi ao desfile.
Apesar de um cenário impensável para os dias de hoje, quando “Alfama fervilhava de gente, principalmente da mais jovem”, a Sociedade Boa União não conseguiu reunir marchantes suficientes para ir à rua. “Abrimos inscrições e afixámos cartazes por toda a parte, convidamos a juventude do bairro”, disse o presidente da coletividade, Almeida Campos.

E o resultado:
À direção da Boa União chegaram apenas a inscrição de 19 rapazes e duas raparigas.
No livro, Ricardo conta que o baixo engajamento traduzia a falta de confiança do alfamistas na administração do Boa União. Afastada do pódio nos últimos anos – o último título havia sido em 1940 – a comunidade resolveu dar a resposta virando as costas à marcha.
Pressionado pela resposta popular, a Boa União foi buscar na vizinha Mouraria, campeã justamente em 69, o ensaiador José Ramalho, como resposta. “Isto revela bem a importância que tem para o bairro e a coletividade, o povo está em sintonia. É impensável para um sítio como Alfama a população não estar sentimentalmente interligada com a marcha”.
O tom caricato é que apesar de não ir ao desfile oficial, a marcha acabou por sair oficiosamente por Alfama e por um motivo bastante atual: o turismo.
Preocupado em manter a fama entre os turista de ponto privilegiado no desfile em Alfama, o dono de um bar no Largo de São Miguel, o Bernardino, arranjou a sua própria marcha, percorrendo as ruas do bairro, batendo “às portas certas”, onde as mães deixariam as raparigas irem ao desfile “à confiança”.
E na véspera de Santo António, conta o livro, os clientes aplaudiram o que seria a marcha mais rápida da história, “ainda que vestida com roupas improvisadas”.
A gentrificação em Alfama entra na marcha
Apesar de não mais “fervilhar de gente”, muito menos de jovens alfamistas, a Marcha de Alfama segue a honrar a tradição de desfilar, mesmo que, em 2023, se conte pelos dedos de uma mão os moradores do bairro entre os 50 marchantes.
A realidade de Alfama tem percorrido as letras das últimas marchas, inclusive uma das duas músicas desse ano, A sina do estivador, de Pedro Mafama, cujo refrão enfatiza a obstinação de quem resiste em partir, ao frisar no refrão daqui não saio, daqui ninguém me tira.
A outra letra para o desfile deste ano foi escrita pelo próprio Ricardo, que, desde 2014, assinou cerca de duas dezenas das canções da marcha, angariando alguns galardões. Em Alfama vai ao Parque Mayer, o letrista lembra o homenageado das marchas deste ano, que em 1932 recebeu o primeiro cortejo oficial.

Os últimos capítulos do livro também se debruçam sobre os efeitos da gentrificação em Alfama, da especulação imobiliária que afasta os moradores históricos.
Ricardo lembra, porém, que apesar de a participação dos locais não se refletir mais no número de marchantes, a marcha segue o único evento que “acalma o bairro e afasta a zanga” entre os alfamistas.
“Quando a Marcha de Alfama sai à rua, todos esquecem de tudo e dos problemas. É o instante mágico em que os vizinhos se dão a mão”, afirma o autor.
E em mais uma véspera de Santo António, a magia certamente estará de volta a Alfama.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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