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É habitual dizer-se que tudo está a mudar. O tempo, esse, está louco. Os hábitos, esses, mudaram. Os valores, esses, desapareceram. As tradições, essas, já não são o que eram. A linguagem, essa, degenerou, na perspetiva de alguns. As preferências de todos os géneros, sejam elas gastronómicas, culturais, literárias, de entretenimento ou sexuais, mudaram. Para uns, para pior. Para outros, para melhor.
Esta perceção da mudança deve muito à idade: quando se vive 60 anos, percebe-se, com uma maior finura, que as coisas mudam, inevitavelmente, acabando por surgir, também inevitavelmente, uma certa nostalgia daqueles velhos tempos, nostalgia essa expressa, por vezes, em canções. “Ó tempo, volta para trás.”
Porém, em bom rigor, tudo está sempre em constante mudança. A vida é, ela própria, uma expressão da mudança. É, pois, da mudança que nasce a diversidade. É, pois, a diversidade que sustenta a capacidade de adaptação às exigências, mais ou menos imediatas, que as mudanças do mundo reclamam. No limite, disso depende a nossa sobrevivência coletiva. Das mudanças, portanto.
Mas…
Se o mundo está em constante mudança – ainda que ela, por vezes, opere numa condição de aparente invisibilidade – porquê esta preocupação, generalizada, com as mudanças climáticas? Acima de tudo, pela forma acelerada com que elas ocorrem, pela sua amplitude, pelos danos que causam, alguns deles irreversíveis.
Com frequência, as notícias dão-nos conta de que as previsões são ultrapassadas pelas observações. Em Abril passado, em Portugal, atingiu-se um novo recorde de valores extremos de temperatura máxima do ar, de 36,9ºC, desde 1945. De facto, a cada dia, um novo máximo. Um novo recorde. Mais um. Outro. E outro ainda.
Não apenas em relação à temperatura do ar, mas também dos oceanos que, aliás, tem vindo a aumentar desde os anos 80 e que, sem surpresa, atingiu um novo recorde, de 21,1ºC, justamente em Abril passado.
As previsões climáticas antecipam, portanto, um cenário de aquecimento, continuado, intensificado, global e, infelizmente, imparável, pelo menos no imediato.
As ondas de calor irão aumentar, não apenas em número, mas também em intensidade e duração. Mais ondas de calor, durante mais dias, com temperaturas mais elevadas. Tanto em Lisboa como em Pequim. Tanto em São Paulo como em Berlim. As cidades vão ficar cada vez mais inflamadas.
Com efeito, num cenário de aquecimento – talvez a expressão mais apropriada, aqui, seja mesmo sobre-aquecimento –, o risco de seca aumenta, o risco de incêndios florestais aumenta, o risco de doença e de morte aumenta.
Segundo as estimativas da Agência Europeia do Ambiente, até 2100, se nada for feito, iremos conhecer um excesso de mortalidade anual de mais de 90 mil europeus devido a ondas de calor.
Ainda neste cenário de sobre-aquecimento, as cidades assumem particular destaque.
De acordo com as Nações Unidas, actualmente, a população que vive em cidades é superior à população que vive em zonas rurais, prevendo-se que, nos próximos 50 anos, venha a atingir os 60%. Porém, as cidades correspondem apenas a 3% do território, o que significa que a tendência é para termos cidades cada vez mais densas, do ponto de vista populacional.
As cidades são, ainda, responsáveis pelo consumo de 80% de toda a energia produzida e por 75% das emissões de gases com efeito de estufa. Inevitavelmente, a luta contra as mudanças climáticas será ganha ou perdida nas cidades.
Os efeitos do calor nos comportamentos antissociais
Os riscos de um sobre-aquecimento das cidades são já bem conhecidos e muitos deles estão já quantificados. São riscos diretos e indiretos, para a saúde, para a economia, para o trabalho, para a justiça, para a educação, para a coesão social e territorial, para a biodiversidade, etc.
Há, contudo, outros riscos menos óbvios. Um deles tem a ver com os possíveis efeitos do aumento da temperatura no discurso de ódio, no assédio, no homicídio voluntário, resultando daí, por conseguinte, um risco de aumento dos conflitos sociais.
A investigadora do Postdam Institute for Climate Research Annika Stechemesser, em 2022, fez um estudo em que analisou mais de 4 mil milhões de tweets, com recurso à tecnologia de machine learning.
Conclusão: em situações em que a temperatura atingia valores extremos, isto é, entre os 42ºC e os 45ºC, a prevalência de tweets que apresentavam discurso de ódio aumentava 22%, quando comparado com os tweets que eram feitos num contexto de temperatura moderada.
Também a investigadora da Universidade de Harvard Ayushi Narayan, especialista em economia do trabalho, conduziu um estudo onde avaliou a associação entre calor e comportamentos discriminatórios e de assédio no local de trabalho, recorrendo a uma amostra de trabalhadores dos serviços postais dos Estados Unidos.
Nos dias em que a temperatura excedia os 32,2ºC, os comportamentos de assédio aumentavam em 5%.
A associação entre o calor e os casos de homicídio voluntário foi estudada em cidades como Chicago e Nova Iorque: um aumento de 5ºC na temperatura diária média correspondia a um aumento de 9,5% e 8,8%, respetivamente, dessa tipologia de crime, concluem os autores desse estudo.
E porquê?
Várias teorias têm vindo a ser propostas para explicar a relação entre calor e comportamentos antissociais.
Uma delas, de natureza biológica, propõe que um aumento de temperatura aumenta o desconforto, a frustração, a impulsividade e a agressão, para além de interferir nas capacidades cognitivas. No caso de ambientes interiores sem arrefecimento, esses efeitos acabam por ser exacerbados, podendo redundar em comportamentos agressivos, tanto físicos como verbais, on-line ou off-line.
Hoje, os planos de adaptação às alterações climáticas das cidades não podem ignorar os efeitos da temperatura nos comportamentos dos cidadãos.
Em cidades cada vez mais densas, cada vez mais inflamadas, o risco de comportamentos agressivos entre pessoas não é um risco desprezável, ainda que possa ser subtil. Aliás, um bom exemplo dessa subtileza talvez seja o sucedido em duas audições recentes da Comissão Parlamentar de Inquérito. Numa sala suscetível à inflamação, reclamou-se muito que o ar condicionado não estava a funcionar adequadamente. Neste contexto, um ar condicionado é muito mais do que um ar condicionado; será, porventura, um dispositivo de contenção. Ou seja, de desinflamação. Também as cidades necessitam destes dispositivos de desinflamação, justamente para que, quando inflamam, impeçam a conflagração.
*Ricardo R. Santos é biólogo e investigador no Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Tem dúvidas sobre este assunto? Pode contactar o seguinte e-mail: isabelasousa@medicina.ulisboa.pt

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