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É ao som do constante do chilrear da ave-rei das salinas – o pernilongo (Himantopus himantopus) – que começa a visita às centenárias Salinas do Samouco, que desde o século XIII estão situadas em Alcochete, a 35 km do centro de Lisboa, em plena Reserva Natural do Estuário do Tejo, na mais importante zona húmida de Portugal e da Europa.
Trata-se de um complexo único no estuário, constituído por 56 salinas, ocupando uma área de 360 hectares e é um exemplo de biodiversidade e património sociocultural. Localizadas numa zona de proteção especial do estuário – o refúgio de maré mais importante do Tejo – as Salinas do Samouco são as únicas a conservar o método tradicional da produção de sal, artesanalmente produzindo sal marinho fino e grosso e flor de sal de extrema qualidade.
Com uma produção anual de uma tonelada de flor de sal e 120 toneladas de sal marinho, as Salinas do Samouco fornecem lojas bio, pequenas mercearias, algumas Juntas de Freguesia de Lisboa – que utilizam o sal como herbicida natural nos passeios da cidade – e também piscinas, que assim substituem o cloro, regas de estufas de salicórnia, termas para banhos terapêuticos e até a indústria cosmética, pois o sal das Salinas do Samouco é exportado para a marca internacional Lush.

Habitats naturais, hortas biológicas
Mais que um produtor de sal, o complexo das Salinas do Samouco inclui um projeto ecológico e ambiental de proteção e conservação de habitats naturais de flora e fauna, sendo um local de alimentação, refúgio e nidificação para milhares de aves (mais de 170 espécies) e uma variedade de peixes, crustáceos e pequenos animais.
A Fundação para a Proteção e Gestão Ambiental das Salinas do Samouco conta com diversos projetos como o estudo das aves e o uso sustentável dos recursos naturais – com a criação das hortas biológicas e a recolha de plantas halófitas (plantas terrestres que estão adaptadas para viverem junto ao mar ou nas suas proximidades, tolerando a salinidade das águas).
Aliás, um dos mais antigos salineiros, o Sr. Augustinho, com 90 anos e já reformado, é o responsável pela horta social que a Fundação disponibiliza aos hortelãos da região para cultivo biológico em mais de 80 talhões que são alugados pelo valor simbólico de dois euros.
«O Sr. Augustinho cuida de uma das hortas biológicas e vem todos os dias de manhã na sua bicicleta, vai almoçar a casa em Alcochete e regressa à tarde para completar os cuidados com as plantações de cebolinho, cebolas, batatas, etc., sem uso de qualquer tipo de pesticida», conta André Batista, educador ambiental da Fundação.
«Um dos principais objetivos da Fundação é a sensibilização e educação sobre a temática das zonas húmidas e em especial sobre o complexo das Salinas do Samouco, realizando visitas guiadas à população em geral e a grupos escolares, disponibilizando programas escolares multidisciplinares», diz ainda André Batista que acompanha passo a passo estas iniciativas de consciencialização ambiental.
«A biodiversidade desta zona é imensa, pois além da presença das aves residentes, como o pernilongo e a garça real, e das centenas de aves migratórias (como os flamingos juvenis, uma espécie original do sul de Espanha), temos mantido e criado também vários habitats para a fixação de uma vegetação de sapal, uma área de dunas cinzentas, pomares e um pequeno pinhal. E há muitos coelhos e pequenas raposas a habitarem o local também», explica o educador ambiental.
«Plantas como a salicórnia (da família Amaranthaceae), conhecida popularmente como ‘sal verde’ ou ‘espargo do mar’, é um ótimo substituto do sal nas saladas ou em cozinhados e hoje já é considerada muito importante pelos ‘chefs’ nacionais e internacionais», diz André.
Também outro arbusto das salinas tem propriedades especiais – a salgadeira (Athriplex halimus L.), que liberta o excesso de sal nas suas folhas. Estas plantas são extremamente importantes para o estuário pois ajudam a limpar as águas, absorvendo metais pesados, e servem de alimentação a muitos peixes que vivem nos tanques da salina – enguias, douradas, robalos, peixe-rei, além de berbigão, mariscos, ostras e caranguejos.

A pontilhar os caminhos entre tanques e esteiros, uma miríade de flores campestres com variadas cores e formatos atraem e entretêm os insetos e as borboletas em mais uma harmonização ambiental do espaço das salinas.
Um estábulo com burros mirandeses e um Observatório de aves
Outra salvaguarda ambiental importante no complexo das Salinas do Samouco é a proteção da única raça portuguesa de burros – a Mirandesa –, que estava em extinção, tendo a Fundação adotado 10 exemplares. «Tratamo-los num estábulo especial e eles ajudam-nos a desbastar a vegetação!»

Para as ações pedagógicas, a Fundação ainda dispõe de um Observatório de Aves com acesso para pessoas com mobilidade reduzida, uma Casa da Anilhagem/Oficina do Ambiente, onde é feita a captura e marcação das aves que frequentam as salinas, além de um Centro de Exposições e Audiovisuais, uma área para reuniões, formações, inclusive disponível para aluguer para festas (o Palácio dos Pinheirinhos), uma loja e receção, uma zona de apoio e um parque de merendas.
Aos fins de semana, a Fundação das Salinas realiza visitas guiadas pelos diversos trilhos – o Trilho do Pernilongo, com 6 km de extensão; o Trilho do Flamingo, com 4,7 km, e onde se observam a avifauna, os burros mirandeses e o salgado; e o Trilho Mobilidade Reduzida (2 km). Nos meses de verão é possível inscrever-se para a rapação do sal.
Um complexo centenário formado por esteiros e tanques
As 56 salinas estão distribuídas num intrincado sistema de valas (esteiros) que abastecem os diversos tanques com água proveniente do rio Tejo que, por sua vez são controladas por uma série de comportas.
«Temos de gerir muito bem os níveis de água nos diferentes tanques, até por causa da altura das patas das aves que ali nidificam e se alimentam», detalha André dizendo que a salinidade de cada tanque difere e, consequentemente, o tipo de alimento disponível para as aves.
Os métodos antigos da produção do sal foram adaptados e assim cada esteiro (vala ou caminho) é controlado pelas comportas que se abrem ou se fecham na altura da maré cheia. «As comportas são portas corrediças e sua manutenção é muito dispendiosa pois há o desgaste de erosão como efeito das águas salobras e o lamaçal. E ainda temos de estar atentos e prevenidos quanto a furtos do material!», conta André.
Assim ao longo do caminho vão espraiando-se os diversos tanques – os viveiros, com cerca de 1,5 metros de profundidade, que são os principais reservatórios de água; os evaporadores, com 10 a 15 centímetros de profundidade; as reservas; os caldeirões de moirar, onde a água se acumula até ter salinidade suficiente; e finalmente os cristalizadores, tanques mais pequenos com cerca de 12 metros de comprimento e cinco de largura, de onde se retira o sal.
«Para se ter uma ideia as águas que vêm com a maré no rio Tejo tem 20 gramas de sal por litro e para fazermos o sal são necessárias 250 gramas por litro! Por isso só se produz sal no verão quando a evaporação é intensa e a concentração de sal é maior».
O laborioso trabalho de apanhar o sal
O primeiro passo deste complexo trabalho é a preparação dos tanques cristalizadores, pois é necessário retirar as lamas e a matéria orgânica que se acumularam, utilizando um instrumento chamado pá de ralar. Só quando estes tanques estão completamente limpos é que se abrem as respetivas comportas para trazer a água para evaporar.
O trabalho de retirar o sal destes tanques cristalizadores exigem paciência e um ritmo adequado. Os salineiros não utilizam nenhuma substância química ou lavagem para clarear o sal.
«A produção do sal é totalmente artesanal com a utilização de um rodo de madeira com o qual cada salineiro leva um dia para rapar um tanque com todo o cuidado para não escurecer o sal marinho, sendo que a flor de sal exige ainda mais cuidados pois é retirada apenas da superfície das águas. Assim produzimos um sal de alta qualidade e com certificação de origem, numa área de salinas com 15 a 17 hectares.»
Na Casa do Engenho, há uma nora com motor elétrico alimentado por painéis solares. Depois, é na Casa do Sal que se armazena a delicada flor de sal e onde o sal é passado no moinho: uma vez para a produção do sal grosso e duas vezes para o sal fino.
«O principal é manter a cultura viva, a representatividade histórica de uma salina que chegou a contar com 150 salineiros no ativo. Desde 1995, realizamos uma manutenção constante de todos os tanques e esteiros, bem como de toda a área envolvente», explica André Batista.
Esta atuação exemplar na salvaguarda do património sociocultural, ambiental e da biodiversidade na região que a Fundação Salinas do Samouco exerce está em flagrante contraste com o total abandono a que está votado um enorme complexo industrial da empresa Ribeira Alves, com vários pavilhões outrora dedicados à seca do bacalhau e que desde a década de 1990 estão desativados e displicentemente esquecidos em ruínas.
Salinas do Samouco
Palácio dos Pinheirinhos. Complexo das Salinas do Samouco, Alcochete
Tel.: 212 348 070; Tlm.: 927 984 440
E-mail: contacto@salinasdosamouco.pt
salinasdosamouco.pt
Horário de verão (março a setembro) – Visitas Autónomas, Percursos à pé e BTT – 2.ª a 6.ª, das 8:00 às 17:00 h. Fim de semana: das 10:00 às 19:00 h. Visitas Guiadas com marcação prévia.
Como chegar
Barco – Transtejo e Soflusa
Autocarro – TST 410, Barreiro; TST 412, Montijo; TST 431, Lisboa
Carro – GPS: 38º 44’ 42”N; 8.º 58’ 80” O
*Nysse Arruda é jornalista especializada em náutica, fundadora e curadora do Centro de Comunicação dos Oceanos- CCOceanos – série de palestras a abordar temas relacionados com os oceanos, conectando os países de Língua Portuguesa e tornando Portugal um polo de partilha de informação atualizada sobre os oceanos.
Parabéns Nysse Arruda e Marisa Cardoso, pela reportagem sobre “Salinas do Samoco”! Precisamos, cada vez mais, do verdadeiro jornalismo, ou seja, de informações inteligentes do que ocorre à nossa volta. E , se vier com imagens feitas com o carinho e a arte da comunicação, a matéria está perfeita. Congratulações de um leitor além- mar.