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Esta é uma reportagem do projeto Correspondentes de Bairro

O ano era 2018 e o lisboeta Flávio ganhava a vida em França a calçar as ruas de Nice e Mónaco com as inconfundíveis calçadas portuguesas. A empresa fundada há oito anos estava bem, pavimentando um futuro literalmente sólido aos imigrantes que tinham trocado o calmo bairro de Santos pela agitada Riviera Francesa.

Mas o coração de Flávio não batia na cadência do martelo nas pedras, e sim, no dinâmico beat dos funanás e da kizomba.

“Estava tudo a ir bem, muito trabalho, bom dinheiro, mas mesmo assim decidi voltar a fazer música”, conta o lisboeta, o “voltar” uma referência não só ao retorno a Lisboa natal, mas também à cena musical, onde antes o sério empresário Flávio Mendes dos Santos subia aos palcos, mais conhecido como o animado Lavvy.

Na juventude, Lavvy precisava sair do bairro do Rego para ir a um estúdio em Queluz para poder ensaiar. Foto: Líbia Florentino.

O Lavvy dos Dark Face, o grupo de rap que durante cinco anos embalou as festas nos liceus de Lisboa. E não só. “Chegamos a tocar em todas as discotecas africanas da cidade”, lembra Lavvy, o nick retirado do “l”, “a” e “v” do nome Flávio, “com um toque mais artístico”, como ressalta o próprio cantor, de dobrar o “v” e adicionar um “y”.

Caprichar no nome artístico desde sempre foi uma marca dos rappers. No Dark Face, Lavvy tinha a companhia de dois amigos do bairro do Rego, José António e Domingos Duarte – isso até a música começar a tocar, quando se transformavam em Kris-T e Xonas, com a origem das alcunhas aparentemente mais difícil de se explicar.

Tão difícil de explicar é também como uma banda destas, que se apresentou em todas as discotecas africanas de Lisboa, de uma hora para outra retira-se do palco.

Ou não.

A procura pelo “trabalho de verdade”

O trio de amigos do bairro do Rego que realizou a façanha de levar os ritmos de Cabo Verde e as letras românticas made in bairro do Rego aos liceus e discotecas de Lisboa, porém, não conseguiu escapar a uma realidade até hoje comum para os jovens e adolescentes dos bairros sociais onde nasceram: a realidade de se sentir pressionado a encontrar um “trabalho de verdade” quando se acaba os estudos e começar a ajudar no orçamento da casa.

Lavvy caminha diante de um mural no bairro do Rego: deixou as calçadas portuguesas para pôr o pé na estrada da música. Foto: Líbia Florentino.

Foi o caso dos dois amigos Kris-T e Xonas.

Enquanto eram adolescentes em idade escolar, entre os 15 e 19 anos, não houve tanto problema em contar com o apoio dos pais para os concertos dos Dark Face. Mas a partir daí, a dura realidade do bairro bateu à porta dos agora adultos José e Domingos.

“A maior dificuldade dos jovens do bairro do Rego sempre foi e ainda é ter apoio, estrutura e influência. Apoio da família para fazer o que gosta, estrutura para poder praticar o que gosta e a influência de ver outras pessoas do bairro a fazer a mesma coisa. Assim como quem pensa em ser jogador de futebol no bairro precisa de ir a outro bairro atrás de um campo, quando eu precisava ensaiar, tinha de ir a um estúdio em Queluz”, exemplifica Lavvy, que mesmo com as dificuldades seguiu mais alguns anos na rotina dos palcos. “Isto porque sempre tive o foco na música”, aponta.

Mesmo assim, pouco tempo depois, Lavvy ouviu a realidade de encontrar um “trabalho de verdade” também bater em sua porta. Era hora de partir para França.

De um estúdio no bairro do Rego para os festivais de música de Cabo Verde no mundo

Lavyy conecta a guitarra elétrica ao amplificador no estúdio profissional instalado onde antes era a sala do seu apartamento, no segundo andar de um prédio social no bairro do Rego. Logo se ouve em alto e bom os acordes de N’ta Amau, uma das músicas compostas pelo lisboeta, como quase todas elas, uma história de amor.

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As idas e vindas a Queluz ficaram para trás.

Agora, só é preciso dar alguns passos do quarto até o local de trabalho. As portas do Fortíssimos, o nome do estúdio e da editora musical que Lavvy fundou, também estão abertas aos músicos e candidatos a pop star do bairro, que passaram a contar com uma estrutura profissional por perto.

Uma iniciativa que aparentemente conta com a colaboração dos vizinhos, pois apesar da solidez da parede revestida de pedras pela versão construtor de Lavvy, o alto volume dá sinais de extravasar o som a outros andares. Os vizinhos reclamam? “Às vezes, reclamam sim, mas o lamento é pouco”, ameniza o músico, diplomático.

O estúdio da produtora musical que Lavvy montou na sala do apartamento onde vive, no bairro do Rego. Foto: Líbia Florentino.

Lavvy também tem pouco a lamentar-se. Cinco anos depois de parar de construir as calçadas portuguesas em Nice e no principado vizinho, o músico pavimentou uma nova estrada profissional, não só a de cantor, mas de compositor, ouvindo as suas músicas na voz de outros artistas, como Soraia Ramos, Gaby Fernandes e os Gama.

Frequentemente volta a França, mas agora para realizar concertos ou como produtor musical, outra das suas valências. “Produzo festivais de música cabo-verdiana em cidades francesas e de Luxemburgo”, conta, sacando o telemóvel para mostrar o último deles, o Cabo-Verde Festival Luxemburgo 2023, em Esch-sur-Alzette, com a casa lotada.

Cantor, compositor e produtor. A rotina entre o palco, as partituras e o backstage não é fácil, mas Lavvy ainda encontra espaço para uma outra atividade que nas últimas duas décadas tem rendido frutos com a mesma pujança de sua produção musical. “Tenho sete filhos”, diz, entre risos, o pai de duas raparigas e cinco rapazes.

“Deve ter a ver com eu ter tido doze irmãos”, arrisca o músico, exibindo os braços tatuados com os nomes de todos deles. Pode ser, ou talvez seja uma prova de que para escrever e cantar tanto o amor, seja preciso ir muito além da teoria.

Foto: Líbia Florentino

*Hugo Duarte Monteiro tem 18 anos, cresceu no Bairro do Rego, na freguesia das Avenidas Novas. É um das Correspondentes de Bairro da Mensagem. Sempre esteve ligado à associação Passa Sabi. Nestes últimos anos de maior envolvimento na comunidade através da associação, testemunhou como o esforço e a dedicação deixaram marcas importantes no bairro.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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Hugo Duarte Monteiro

Hugo Duarte Monteiro tem 18 anos, cresceu no Bairro do Rego, na freguesia das Avenidas Novas. É um das Correspondentes de Bairro da Mensagem. Sempre esteve ligado à associação Passa Sabi. Nestes últimos...

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