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Foi uma confusão do caraças. Assim até vale a pena ir a funerais. Quando me pediram o frete, não imaginei que aquilo fosse um convite para uma festa. Só por isso, aliás, é que fui a contragosto. Ninguém quer passar um domingo de Maio debaixo do sol ardente que bate sem clemência na Estrela. É sempre a mistura do desastre: camisas suadas debaixo de blazers quentes, primos que fingem que adoram primos, primos que fingem que não vêem primos, tias indignadas com este ou aquele, sobrinhos com vontade de as mandar para o raio que as parta, e aquele cheiro horrível a flores e a mel que não deixa dúvidas a ninguém: é o cheiro de um morto que ali está.
E a morta lá estava, finalmente sossegada. Para vergonhas daquelas, mais valia nem ver. O funeral não era de um Pedrosa, o meu amigo Miguel é que me pediu que o acompanhasse. Era para ele um dia trágico, não por entregar a avó, que ainda estava longe, admitamo-lo, de ter idade para cadáver, mas porque ia ter de lidar com a namorada do avô. Ainda por cima, a mulher do Miguel trocara-o por outro dois meses antes, e todos achávamos que não teria o desplante de meter lá os pés depois de toda a gente saber que o fizera. Ou seja, quando dei por mim, era o date do neto da defunta. O filho, pequeno, também lá andava, exactamente como eu a partir do momento em que percebi o que era aquilo: uma festa.
Resumir isto vai ser o diabo, que há poucas famílias que caibam numa crónica. Regra geral, faz-se assim: X e Y casaram no dia tal do ano tal; o primeiro filho nasceu a coiso; o segundo nasceu a etc.; um dia, chegou um cancro, foi um ai-jesus que deus me livre; meteu-se um tratamento, deu-se uma desilusão; meteram-se comprimidos, não fizeram efeito; chegou outra treta qualquer e eis o fim da vida; X morreu, Y ficou viúvo; foi uma chatice, mas a vida é mesmo assim e pelo menos tiveram muito anos para se curtirem um ao outro, não é verdade? Não.
Quer dizer, em parte, sim. Aguentaram muitos anos juntos, até porque o divórcio fica mal a muita gente. Os filhos já estavam crescidos, os netos também. Moravam em Campo de Ourique numa casa que era a coisa mais fofa que eu já vi. Mesmo em frente ao Jardim da Parada, parecia que tinha um jardim privado. Era sair de casa e ter o descanso da sombra das árvores. Mas pronto, não interessa. Sou cronista, não ganho comissão na REMAX, e a casa também não está para venda. Podia estar, mas aconteceu que assim-assim. Já explico. Foi o caos. Meu deus, que família. Alguém me dá um abraço a ver se eu tenho força para avançar?
Um dia, o avô do Miguel conheceu uma miúda. Já era avô, por isso seria mais natural que conhecesse uma senhora. Mas nada, ela nem aos 50 tinha chegado. Pior, não tinha sequer chegado aos 45. Nem sequer, imagine-se, aos 44. Ele já passava dos 70, a esposa dos 72. Não sei bem como é que a coisa se deu, mas de repente o homem estava apaixonado “pela primeira vez na vida”. Disse-o assim aos filhos, quase como quem diz que a mulher é um trambolho. E disse que estava velho, mas não morto, e que por isso ia viver o seu amor. Dois dias depois, estava fora de casa. No mesmo dia, também a Senhora Miúda saiu da casa dela, onde teria vivido, julga-se, com o marido: mais novo do que ela, era pouco mais velho do que o Miguel. Foram os dois morar para um T2 em… Campo de Ourique. Lisboa é tão imensa, mas para quê fugir do drama, para quê distanciar o álcool da ferida que quer arder? Há quem goste de viver intensamente. O argumento do homem era que, caso a mulher precisasse dele, ele ali estaria em dois minutos. Bom marido, não a deixava acamada sem lhe dar a esperança de um copo de água fresca em dias de muita sede. Ela, lixada da coluna, ainda tinha a cabeça que era um espectáculo: sabia que o marido estava com a outra, que ia da cama dela para a sua, onde lhe via as rugas e a mesinha-de-cabeceira com pomada e betadine. O coração, coitado, mesmo sem artérias entupidas, estava ali estropiado. Ele, antes de voltar para a amante, dava um beijinho nas mãos da mulher para cumprir o dever de quem assinara papéis na igreja.
Mas enfim, morreu a senhora, era suposto que isto simplificasse a vida a quem ficava. Nada, foi o caos. Enquanto a enterravam, o Miguel chorava, mas a olhar para a outra: “Não acredito, não acredito nisto.” Eu, que estava a distrair o puto, mais distraída fiquei por ele andar distraído. O avô, lúgubre, chorava também. A Senhora Miúda encostava-se-lhe ao ombro, fingindo a tristeza que não tinha. E o Miguel continuava preso no verdadeiro drama: “Por amor de deus. Não quero ter um tio mais novo que o meu filho.”
Ora bem, ela na altura já ia nos 40 e muitos. Era um tiro no escuro, mas era um tiro. Não parecia muito provável, mas não era impossível. O que me chocava, admito, era a possibilidade de o avô ainda disparar. Até me atrapalhei toda: “Ó Miguel… Eu acho que com aquela idade já não dá…” Também não era sítio para me pôr a falar de ovulação.
Ele garantia-me que sim, que havia exemplos daqueles, e bem piores, que tinha lido na Internet. Eu recusei-me a imaginar mais do que o que via, já para lá de incomodada com aquilo, mas incapaz de prever o que viria.
O funeral acabou. O povo secou as lágrimas. A família começou a sair. A Filha da Morta dirigiu-se à Senhora Miúda. Disse-lhe “Conseguiu o que queria, não foi?” e a mulher nem respondeu. O pai também não disse nada – davam-se mal desde sempre porque ele preferia o álcool.
Posto isto, foi cada um para o ninho. Dias depois, a Filha da Morta telefonou ao Adúltero: queria ir à casa da Defunta buscar não sei o quê, mas já não tinha as chaves. Aquilo deu um pandemónio, olha que não, deixa lá isso, a vida anda para frente. Tanto insistiu na nega que ela viu que havia ali confusão. E por fim lá entendeu que a casa onde estavam as ceroulas da mãe já era ocupada pela namorada do filho da Senhora Miúda. Fez-se tudo entre a família, excluindo-se apenas a família: “Adúltero, amor, a Joaninha anda à procura de uma casa, coitadinha.” Fez-se, do nada, um contrato de arrendamento, o valor que dali vinha passou a ajudar a pagar a nova casa do novo casal, e aquilo ficou tudo para ela, incluindo coisas com valor sentimental e nenhum valor económico que ficaram estragadas ou foram atiradas fora. O Zeca, namorado da Joaninha, continuou a viver com a Senhora Miúda na casa que era paga em grande parte com o dinheiro que a Defunta tinha feito a trabalhar na repartição das finanças.
Aquilo deu para o torto. A Filha da Morta foi lá. Não estava para aturar a namorada do pai, quanto mais a namorada do filho dela. Uma família já dava trabalho, quanto mais duas. Foi lá, bateu à porta, armou ali um pandemónio. O Miguel foi com ela. Eu, não sei bem como, lá me vi também. Já não sabia se aquilo era drama ou se eram os Santos Populares. Música ia haver, e depois pimba.
Deu barulho. A Joaninha recusou-se a abrir a porta. A Filha da Morta abriu-a na mesma. Pouco depois, a polícia veio pôr calma na casa, e quem acabou na esquadra fomos todos nós, incluindo o bebé, que não parava de perguntar se íamos brincar ao parque. Eu só lhe dizia “Sossega, Guigui, parece que tomaste coca” e ele entrou na esquadra dizendo “Eu não tomei coca, a sério, hoje eu não tomei coca”. E eu, que nem me aproximei da casa, dei por mim a responder como raio tinha arrombado a porta e a tentar assegurar que o miúdo estava a falar de Coca-Cola. A Joaninha garantia que o Miguel é que lhe tinha dado quatro estalos. A Filha da Morta só dizia “Tenham vergonha, seus gatunos. E a minha mãe?! E a minha mãe?! E a jarra que ali estava?!”
Mas a jarra, coitada, não mais voltaria, tinha sido feita em cacos. A Joaninha noutros cacos estava. Tão chocada e assustada ficou, acabou tudo com o Zeca. E com isto a casa da Defunta, a casa da infância da Filha da Morta, passou a ficar nas mãos da ex-namorada do filho da namorada nova do pai, agora viúvo, que continuava num caso com uma mulher casada. Ainda cometi o erro de perguntar onde andava o marido da Senhora Miúda e isso um dia há-de ser ração para crónica.
Depois disto, tentei telefonar à mulher do Miguel a ver se conseguia devolvê-lo. Atendeu-me de Palma de Maiorca e disse-me “Agora amanha-te tu.” Eu tentei amanhar-me como pude e nunca mais lhe atendi o telefone.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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