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Para a semana, será entregue a Alessandra Esposito, uma das “gaulesas” da Mouraria, a chave de uma nova casa. É a celebração de mais uma mudança na vida desta mulher que já muitas lutas travou contra a habitação em Lisboa. Uma celebração que ganha vida no Festival Internacional de Literatura e Língua Portuguesa – 5L, esta quinta-feira, com a reposição do espetáculo Kantata do Tecto Incerto – um espetáculo cantado que uniu muitos daqueles que sofreram problemas de habitação. “Houve um convite por parte da organização e o espetáculo é uma maneira interessante de promover a palavra”, assim conta Catarina Carvalho, da equipa de produção.
“O festival tem uma ideia muito política e a nossa temática da habitação continua tão relevante”. E é por isso mesmo que, esta quinta-feira, a Casa da Achada leva 31 das 42 pessoas que participaram no projeto original à Biblioteca Palácio Galveias, sala Agustina Bessa-Luís, às 18h, para cantar aquele que continua a ser um problema bem real nas suas vidas.
Passaram pelo Porto, por Grândola, pelo Largo da Achada e pelo Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz. Mas foi na Casa da Achada – Centro Mário Dionísio, na Mouraria, que tudo começou: foi aí que a Mensagem encontrou algumas das histórias que inspiraram a poeta e dramaturga Regina Guimarães a escrever o texto deste espetáculo depois transformado em canções.
Uma dessas histórias é a de Susana Domingos Gaspar.
Quando a coreógrafa se mudou de Torres Novas para Lisboa, não sabia aquilo que a esperava. Mudara-se para estar mais perto do pai da sua filha Leonor, porém, perante as rendas altas da cidade, só conseguiu arrendar um quarto. Aconteceu então o impensável: o Tribunal impediu-a de viver com Leonor.
Hoje, Susana já vive numa casa com a filha, mas tudo graças à ajuda da mãe. Mas continua ativa no movimento do direito à habitação, que lhe permitiu manter a “sanidade mental” nos momentos mais difíceis. Por isso, quando a convidaram (e à filha) para participar num espetáculo sobre o direito à habitação, Susana não hesitou.



Este é um espetáculo cantado que, para Susana, representa “um momento catártico”. “Estou aqui, enquanto trabalhadora precária, a cantar como participante, como cidadã”.
Tornar a crise da habitação num espetáculo
A habitação era um tema que há muito preocupava a Casa da Achada, uma associação cultural com uma forte vertente política, especialmente porque basta espreitar para fora do seu edifício para se identificar prédios devolutos e alojamentos locais onde dantes morava gente.
“Este é um tema gritante que se impõe e que nos toca a todos nós”, diz Catarina Carvalho, da equipa de produção da Kantata do Tecto Incerto. “Uns porque estão a ver as rendas a aumentar, outros porque têm medo que as rendas aumentem, outros porque foram despejados ou porque já dormiram na rua”.

A ideia de trabalhar a habitação numa criação coletiva surgiu de experiências anteriores como a Kantata da Algibeira, um espetáculo comunitário sobre o tema do dinheiro realizado em 2013 pela Casa da Achada, e ainda a Philarmonique des Mots, um espetáculo sobre a comida realizado em 2010 pela Associação Cardan em Amiens, França.
A Kantata do Tecto Incerto arrancou com uma campanha de crowdfunding em 2020, a partir da qual se conseguiu angariar 13 mil euros. No entanto, a pandemia e a morte de uma das maiores impulsionadoras deste projeto, Margarida Guia (que dirigira a Kantata da Algibeira), atrasaram o seu arranque. Só em 2022 é que começou a dar-se vida a esta nova kantata, ouvindo-se as histórias da comunidade.
Ana Gago e Maria João Costa são da associação Habita! e desde logo juntaram-se para dinamizar algumas conversas. Porém, mesmo elas tinham as suas próprias histórias para contar. Afinal, também elas são habitantes de Lisboa, e vivem aquela que é uma realidade para a maioria dos lisboetas: “Eu juntei-me à Habita! porque um dia recebi um telefonema da senhoria a dizer que eu tinha de sair daí a uma semana”, conta Ana.


A luta pelo direito à habitação levou-a a cumprir aquele que é também um dos princípios da Habita!: “Que as pessoas que nos procuram tenham todo o espaço para ficar na organização”, explica Maria João.
As pessoas foram então chegando, vindas de todos os lados, para contar as suas experiências. Ouviu-se de tudo: histórias de quem já viveu em carrinhas, de quem já viveu na rua, de refugiados que viam a sua casa como um abrigo para a guerra. A própria ideia do que é, afinal, uma “casa” foi tema de horas e horas de debate.
E de todas estas discussões nasceu, em março, o texto de Regina Guimarães que João Caldas e Pedro Rodrigues, da parte da composição e da direção, transformaram em música. “É muito emocionante: são canções sobre lutar, sobre os sítios, sobre o que é viver, há músicas que dão força, há outras que são mais introspectivas”, diz Ana Gago.
Tornar a canção numa ferramenta de luta
O primeiro ensaio com a comunidade foi em abril. As músicas já estariam prontas, não fosse esta uma criação coletiva, sempre sujeita a alterações. “Havia coisas que já trazíamos mais acabadas, mas há sempre coisinhas pequeninas a acrescentar para se criar novas texturas: novas brincadeiras, poemas, frases de luta ou de denúncia”, diz Pedro Rodrigues. “As vozes são diferentes, os timbres são diferentes, as pessoas são diferentes”.

São todas pessoas muito diferentes, mas é impossível não reconhecer a garra das três gaulesas da Mouraria que, neste espetáculo, têm direito a uma canção só sua: “O Rimance das Gaulesas dos Lagares”.
Em 2016, perante cartas do senhorio que anunciavam a venda do prédio onde moravam nos Lagares, Rosário Conceição, Carla Pinheiro e Alessandra Esposito começaram a luta, e lançaram mesmo uma música que circulou pela Internet.
Hoje, as gaulesas, o nome que lhes foi atribuído pelo ex vereador do Bloco de Esquerda Ricardo Robles por lutarem pela sua Mouraria como Astérix e Obélix lutavam pela sua Gália, participam neste espetáculo com as suas vozes. É uma nova luta, mas uma luta diferente. “Esta luta é melhor, é mais saudável”, diz Carla. “Para esta não levo armas”.

Não leva armas, mas leva a memória de tudo o que aconteceu: à custa de muito batalharem, estas três mulheres conseguiram a renovação do contrato das suas casas. Agora, já não vivem nos Lagares, mas sim em casas camarárias que lhes foram atribuídas pela Câmara. E hoje vêm acompanhadas de um novo membro gaulês: a Marlisa, filha de Conceição.
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Há músicas que resistem no tempo. “Como vai, senhor Contente? Como está, senhor Feliz? Diga à gente, diga à gente, como vai este país”. Poucos serão aqueles que ficam indiferentes a estes versos, cantados nas vozes de Nicolau Breyner e de Herman José. A primeira vez em 1975, na transmissão da rubrica humorística protagonizada por…
Marlisa tem apenas 16 anos mas adora teatro e por isso juntou-se a esta luta. Até porque cresceu a ver a mãe a lutar: “Foi um pouco difícil, cresci bastante ao ver a minha mãe”, conta. “Um dia, se acontecer comigo, vou conseguir ser como ela”.
É com estas palavras que se anuncia a hora de começo do ensaio. Mas, antes de se percorrer todo o espetáculo sem interrupções, afinam-se as vozes com trava-línguas, relaxam-se os corpos com exercícios de movimento e brinca-se com um trocadilho à volta do título do espetáculo: “kantata do tecto incerto, kantata do tecto incerto…”.
Aproxima-se o grande dia, mas os intérpretes estão mais que preparados. Têm as canções na ponta da língua e a atitude para continuarem a lutar. Nas palavras de Maria João Costa: “Este espetáculo é uma ferramenta de luta”.
A atuação Kantata do Tecto Incerto acontece às 18h do dia 4 de maio, na Biblioteca Palácio Galveias
Veja aqui a restante programação do Festival Lisboa 5L, do qual a Mensagem é media partner, que acontece entre os dias 4 e 7 de maio – iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

Inês Leote
Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 21, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. Agora, está a fazer um estágio de fotografia na Mensagem de Lisboa.

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Foi um trabalho de muitas horas que aconteceu para dar conhecimento a todos nós sobre o problema da habitação que privoca tanto sofrimento de luta atanta gente.
A Casa da Achada, à qual eu pertenço, está sempre na vanguarda a tratar problemas atuais que mobilizam muitz gente.
Obrigada a todos aqueles que se preocupam com as pessoas e que duma forma inédita a comunicam à comunidade.