Quando algum amigo ou confrade estrangeiro vem a Lisboa e pergunta em que casa de fados pode ouvir, por exemplo, Carminho ou Camané, temos pena de lhe causar uma grande desilusão: na verdade, hoje em dia é quase impossível ouvir os craques do fado a cantarem ao vivo, a menos, claro, que seja num concerto, mas esse terá sido agendado com antecedência e estará, quase de certeza, esgotado há muito.

Bem sei que nem sempre foi assim; e, antes de o fado ter sido declarado Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, quando os Madredeus davam a conhecer o seu fado no Japão e Mísia fazia um grande sucesso em Espanha, ainda era possível encontrar, em certos estabelecimentos de Lisboa mais ou menos reputados (Senhor Vinho, Clube de Fado, Mesa de Frades, O Faia…), alguns fadistas de nomeada cantando duas ou três noites por semana, ou então dando uma borla numa visita de surpresa.

Foi, no entanto, bastante depois disso que um amigo nosso, então a trabalhar na AICEP, veio pedir-nos ajuda sobre a casa de fados a que deveria levar um grupo de comissários europeus que, estando em Lisboa um par de dias, tinham declarado querer ir aos fados.

Embora nenhum fosse um especialista na canção de Lisboa, encontravam-se entre eles duas ou três figuras de nomes sonantes e, para garantirmos que o nosso amigo sairia bem no retrato, fizemos umas consultas rápidas para descobrir quem estava de serviço naquela noite e acabámos por reservar uma mesa para todo o grupo no sítio que então nos pareceu reunir o melhor elenco.

A noite estava a correr maravilhosamente para os circunstantes, que aplaudiam com entusiasmo os fadistas – preferindo, como quase sempre acontece, as mulheres aos homens – quando, já no fim do jantar, começaram a aparecer, sem que isso nos tivesse sido dito, as grandes vozes do momento – Ana Moura, Mariza, Mísia… – todas preparadíssimas para dar um ar da sua graça, vestidas a rigor e penteadas para a ocasião.

O nosso amigo pensou que as instituições europeias tivessem accionado os seus meios de divulgação sobre a visita dos comissários (ele sabia que a AICEP não o tinha feito, e também não nos reconhecia tanta influência nos meandros do fado); e que seria provavelmente por isso que as maiores vedetas apareciam agora ali, uma após a outra, quiçá para mostrar aos senhores da Europa que o fado merecia realmente o título que conquistara.

Mas estava redondamente enganado.

Afinal, nenhuma das fadistas pudera ainda mostrar o que valia quando se sentiu um burburinho atravessar a sala como tafetá amarrotado: à única mesa que se mantinha livre nessa noite chegou então, com passinhos de lã, uma estrela ainda mais brilhante do que as outras (e pelos vistos muito aguardada): tratava-se do actor e realizador Woody Allen, para quem aquelas raparigas, que já só cantavam ao vivo em grandes salas, tinham feito o «sacrifício» de regressar à casa de fados.

Mas o mais engraçado foi que, quando perceberam quem se sentara ali mesmo ao lado, os comissários europeus já nem ligavam às fadistas, parecendo autênticos adolescentes fascinados com o seu ídolo; e, de cada vez que havia uma pausa entre intérpretes e se acendiam as luzes, levantavam logo o rabo da cadeira para irem pedir um autógrafo a Woody Allen…

Este, ao que dizem, mal abriu a boca – e até hoje ninguém sabe se gostou do que ouviu.


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.


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