Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
Como se chega do ponto A ao ponto B? No que toca a circular numa cidade, geralmente, a resposta passa por atravessar uma passadeira. A cidade está cheia delas, mas nem todas estão adaptadas a todos os cidadãos. Basta anotar o momento em que a luz verde se acende no semáforo até que ela se desliga: quantas vezes não é o tempo para atravessamento insuficiente?
Foi ao reparar que o tempo de um dos semáforos da capital era tão reduzido que estaria a pôr peões em risco, que um grupo de cidadãos da plataforma Lisboa Possível quis arrancar com a mudança: de repente, os transeuntes da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro (entre São Domingos de Benfica e Campolide) viram aumentado o tempo de 15 para 37 segundos (o tempo médio que, segundo a lei, se demoraria a atravessar) do sinal verde de uma passadeira.
Uma travessia de 14 metros sem separador central, em frente ao número 80, que a passo normal demoraria sempre pelo menos 22 segundos a ser feita – como viemos a experimentar.

Tudo aconteceu depois de uma queixa formalizada junto da Câmara Municipal de Lisboa e ao Instituto Nacional para a Reabilitação pelo coletivo, que esperou oito meses por uma resposta.
Bastou recorrer à lei para o conseguir. E o tempo do semáforo mudou mesmo.
O que diz a lei?
Era a “forma através da qual podíamos mudar isto”, explica Ksenia Ashrafullina, da Lisboa Possível. A lei, aliás, é bem clara em relação aos tempos do sinal verde nas passadeiras:
Perante os factos, a Lisboa Possível formalizou a preocupação. “Foi uma queixa bem jurídica e isso tem um efeito psicológico, mostrou que estávamos preparados”, explica Ksenia. Oito meses depois, receberam finalmente resposta da Câmara – e a passadeira ganhou mais vinte segundos para ser atravessada.
Mas o que se passava na Avenida Columbano Bordalo Pinheiro é um problema que se espalha por toda a cidade e que está, pois, relacionado com a segurança nas ruas, com os números de sinistralidade. Um estudo de 2019, “A maturidade da sinalização e segurança rodoviária em Portugal”, da AFESP (Associação Portuguesa de Sinalização e Segurança Rodoviária), mostra que é nos principais centros urbanos que se verifica a maior sinistralidade rodoviária, sobretudo nos arruamentos dentro das localidades.
Agora, o coletivo Lisboa Possível lançou o repto a partir desta história, propondo, no seu site, um modelo de queixa para ser enviado à Câmara Municipal e ao Instituto Nacional para a Reabilitação. “Provavelmente será um problema em todo o país, considerando o número de queixas que temos vindo a receber”, diz Ksenia.
Quantas mais passadeiras se podem tornar mais seguras?
A queixa deve ser enviada:
- Através do formulário de contacto da Câmara Municipal de Lisboa, ou dos seguintes e-mails: municipe@cm-lisboa.pt e dmm.dipm@cm-lisboa.pt
- Através do formulário de contacto do Instituto Nacional para a Reabilitação ou através do e-mail inr@inr.mtsss.pt
As passadeiras que não cumprem legislação em vigor
Na publicação do Lisboa Possível, logo surgiram comentários de outros cidadãos que estão a arregaçar as mangas para tornar a cidade mais segura. Como este, que contava ter ajudado mudado uma das passadeiras de Alvalade, mas que também reconhecia o problema da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro, que não conseguiu mudar:

“A questão já está identificada há alguns anos”, aponta Diogo Martins, especialista em acessibilidade de transportes. Um outro caso que para ele é exemplificativo é o da passadeira que liga a Gare do Oriente ao Centro Comercial Vasco da Gama.
No âmbito do Plano de Acessibilidade Pedonal, o tempo de travessia seria melhorado, mas, mesmo assim, permanece insuficiente. A extensão das quatro passadeiras, com os três separadores entre elas, perfaz cerca de 30 metros. 30 metros para 34 segundos.
Porém, como a lei estipula os 0,4 m/s “de toda a largura da via ou até ao separador central, quando ele exista”, aqui a lei só se aplica até ao separador central. Sobre estes casos, com separadores centrais, Ksenia denuncia: “É uma grande injustiça”.
Mas há muitos casos pela cidade bastante evidentes. Um outro é o das passadeiras da Avenida da Liberdade. Na passadeira anterior àquela que liga a Avenida da Liberdade ao Teatro Tivoli (ou seja, maior, por se localizar no centro da Avenida), serão cerca de 13 segundos para cerca de 18 metros.
A luta espalha-se pela cidade. Uma petição lançada em 2019 pelo grupo Vizinhos do Areeiro, para além de alertar para a insegurança nas passadeiras provocada pelos condutores muitas vezes em excesso de velocidade, denunciava ainda:
“(…) os moradores apelam à Junta de Freguesia do Areeiro que identifique junto da Câmara Municipal de Lisboa todos os semáforos que estão ilegais (…)Numa faixa de rodagem com dez metros de largura, o sinal verde tem que estar aberto pelo menos durante 25 segundos. Ora, em muitos locais de atravessamento (e sem contar com as ilhas nos separadores centrais!) no Areeiro o peão tem apenas 15 segundos, ou seja 10 segundos que podem fazer a diferença entre a vida e a morte!”.
As 9 passadeiras inseguras à volta do Curry Cabral
Que os tempos de travessia não cumprem a legislação foi também a conclusão de um estudo publicado pela Acta Médica Portuguesa em 2020, em que se avaliou o tempo de travessia de peões nas passadeiras entre o Hospital Curry Cabral e os transportes públicos locais.
Foram avaliadas 26 passadeiras. Para a amostra, contaram com 100 pacientes que frequentavam a consulta externa do serviço de Medicina Física e de Reabilitação e com uma idade média de 75 anos. Responderam a um questionário e executaram um teste de marcha de dez metros.
Mais de três terços desta amostra deslocava-se a pé ou de transportes públicos para o hospital. Para além disso, 29 dos pacientes utilizava algum auxiliar de marcha, como uma bengala (7), uma canadiana (17), duas canadianas (5).
No final, apenas 17 das 26 passadeiras analisadas (65%) cumpriam os requisitos para serem atravessadas com segurança. As restantes 35% representam um obstáculo. Só em dois doentes é que se verificou uma velocidade de marcha inferior a 0,4 m/s (definido por lei como velocidade de marcha normal) – o que significa que, se a legislação fosse aplicada, 99% da amostra teria conseguido atravessar as passadeiras em segurança.

O caso mais flagrante apontado no estudo é o da passadeira da Avenida dos Combatentes, que exige uma velocidade de marcha mínima de 2,17 m/s, ou seja, mais de cinco vezes superior à velocidade definida pela lei.
O tema está a entrar na política da cidade. Em 2020, e com base nos resultados deste estudo, o CDS-PP apresentou em Assembleia Municipal as seguintes recomendações – que seriam aprovadas por unanimidade:
- Que se procedesse à alteração dos tempos de semaforização junto às entradas do Hospital Curry Cabral;
- Que se fizesse um levantamento dos tempos de semaforização na cidade, em particular nas zonas com equipamentos essenciais e de grande fluxo de pessoas;
- Que se apresentasse em Assembleia Municipal o ponto de situação relativo aos pontos anteriores.
Tentámos contactar o CDS-PP, de forma a saber se estas propostas tinham resultado em alguma mudança na cidade, mas não obtivemos resposta.
Como a primazia do carro afeta as nossas passadeiras
Em 2021, começou a ser instalado o SIM.Lx – Sistema de Mobilidade Inteligente de Lisboa, para se substituir o sistema de controlo integrado dos semáforos, vigente desde 1985 na cidade – o GERTRUDE. Nada mais nada menos que o sistema que gere os tempos de atravessamento para cada semáforo.
Segundo a EMEL, este novo sistema permite a centralização de todas as interseções da cidade, conseguindo-se assim uma resposta, em tempo real, a ações programadas como obras ou acidentes. Para além disso, é possível gerir o tempo dos semáforos dos corredores BUS e de corredores para o escoamento do tráfego de entrada e saída da cidade, bem como de zonas de emissão reduzida (ZER).

Mas as mudanças – mais ou menos tecnológicas – têm mostrado uma primazia do carro face ao peão, tantas vezes esquecido na equação urbanística.
“Quem planeia as redes rodoviárias está preocupado em fazer circular o maior número de carros possível. A cidade vive das pessoas. É preciso inverter a mentalidade de quem controla a rede viária”, diz Diogo Martins.
Começam a surgir algumas soluções, como as passadeiras inteligentes, já presentes em algumas ruas de Lisboa. Como funcionam? Ao detetar a aproximação de um peão, iluminam-se, aumentando-se assim as condições de segurança e visibilidade. Uma opção, sobretudo para os mais distraídos.
Mas a questão do tempo de atravessamento da passadeira continua a ser uma problemática por resolver. E Diogo Martins resume: “Quando se opta por ignorar lei, está-se a tomar uma decisão a favor de algo”. Neste caso, é o carro que vence.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz dantes pagava-se com anúncios e venda de jornais. Esses tempos acabaram – hoje são apenas o negócio das grandes plataformas. O jornalismo, hoje, é uma questão de serviço e de comunidade. Se gosta do que fazemos na Mensagem, se gosta de fazer parte desta comunidade, ajude-nos a crescer, ir para zonas que pouco se conhecem. Por isso, precisamos de si. Junte-se a nós e contribua:
Parabéns pelo artigo! Uma pequena correção, pois o estudo não foi realizado pela Ordem Médicos, mas por um grupo de médicos do Serviço de Medicina Fisica e Reabilitação do Hospital Curry Cabral, em prole da segurança dos seus doentes.
Obrigada pela atenção e correção, Luís! Está corrigido 🙂
Gosto muito de A Mensagem, mas o artigo sobre as passadeiras fez-me interrogar sobre o ponto, digamos assim, em que está a saúde mental, quando se considera uma “luta” tudo o que se faz contra o abuso, a prepotência, a irresponsabilidade de quem marca um tempo para os peões atravessarem as passadeiras. Apoio jurídico? Pareceres médicos? Não será uma questão de básico bom senso?
Que poder maluco é esse que estabelece quanto tempo adultos, crianças, idosos, saudáveis, doentes, atletas, utentes de bengalas ou cadeiras de rodas,
necessitam e usam para atravessar a passadeira. Qual ê o objectivo? Que os automobilistas – e não os “carros”..- não gastem tempo e possam cumprir os seus desejos de rapidez?
Alem de prepotente, abusivo e acéfalo, essa determinação (!!!) atenta gravemente contra a segurança, o respeito nas relações humanas, o bem-estar, a tranquilidade das pessoas e da cidade.
Não há paciência para ter que escrever à Câmara para acabar com esta loucura que lhes deu. Não teremos nada melhor para fazer?
Obrigada pelo espaço e pela atenção.