A cidade francesa de Lille ainda tem dficuldade em controlar as rendas. Foto de Alex Mette/Unsplash

Artigo publicado originalmente no Bristol Cable escrito por Matty Edwards e Matthieu Slisse, aqui

Martin é um estudante na casa dos vinte e poucos anos, que vive com dois amigos na cidade francesa de Lille. Apenas duas semanas depois de se terem mudado para o seu apartamento no centro da cidade em setembro de 2020, ficaram sem poder utilizar a casa de banho devido aos estragos causados pela água.

“Dois meses sem casa de banho foi uma falta de respeito”, diz Martin, ao recordar ter de tomar banho na casa dos amigos. Mesmo depois de a casa de banho ter sido arranjada, a renda subiu. Esta história será familiar para qualquer pessoa familiarizada com o mercado de aluguer em qualquer cidade europeia, Lisboa, Bristol [Inglaterra] ou Lille – definido por rendas exorbitantes, insegurança e más condições de vida.

Só que em Lille, no norte de França, o controlo das rendas está em vigor desde março de 2020. Depois de Martin e os colegas de casa terem denunciado o senhorio por violar as regras, receberam um reembolso de 3.000 euros e um novo contrato.

As recentes medidas anunciadas pelo governo português indicam regras de arrendamento que vão dar mais proteção aos inquilino. Nomeadamente a ideia de controlar as rendas nos novos contratos – indexando as subidas apenas ao valor da inflação.

Centenas de cidades em todo o mundo estão a controlar as rendas para as tornar mais acessíveis. Mas também temos de olhar para as cidades em que o controlo de rendas não está a ser eficaz. Como aconteceu com Lille.

Ensinamentos de Lille: decepcionante

Lille tem uma grande população estudantil e é a segunda cidade mais cara de França, depois de Paris. Em março de 2020, tornou-se uma das cinco cidades francesas a introduzir controlos de rendas, juntando-se a Paris e Lyon. Isto foi possível graças à legislação de 2018 que deu às cidades com problemas de acessibilidade económica a autonomia de controlar as rendas.

Em Lille, uma renda máxima por metro quadrado é estabelecida pelo governo local, com base na localização, dimensão, data de construção e se a casa está mobilada. Este máximo é 20% acima de um nível de referência com base nas taxas de mercado.

Mas o impacto do controlo de rendas tem sido decepcionante, com baixos níveis de cumprimento por parte dos proprietários, devido à falta de aplicação e de conhecimento das regras.

Segundo a análise da Fundação Abbé Pierre em outubro, 43% das rendas em Lille até agosto de 2022 foram superiores ao montante permitido, em média mais 190 euros – o nível mais baixo de cumprimento de toda a França. Para propriedades mais pequenas e arrendadas a estudantes e pessoas com baixos rendimentos, a taxa de não cumprimento era superior a metade.

As taxas de cumprimento do controlo de renda são muito baixas em Lille. Foto: Rita Ansone

Uma das razões é a falta de aplicação da lei.

Não há inspeções aos senhorios, apenas a empresas de arrendamento, o que significa que os inquilinos ficam com a responsabilidade de denunciar os senhorios.

Isto foi o que Martin teve de fazer quando se apercebeu que ele e os seus companheiros estavam a pagar mais de 400 euros acima do montante permitido. Os senhorios podem cobrar uma “renda suplementar” quando um imóvel tem características como uma vista agradável, pé direito alto ou uma varanda grande. Neste caso, foi porque o apartamento tinha dois andares.

Após várias cartas enviadas para a agência imobiliária não terem resposta durante meses, Martin e os colegas tiveram de seguir a via oficial – contactaram um serviço de mediação local.

Em fevereiro de 2021, a agência ficou do lado dos inquilinos, mas isto não obrigou o senhorio a fazer nada.

Em abril de 2021, seis meses depois da primeira carta enviada ao senhorio e após longas negociações, os três estudantes conseguiram finalmente um novo contrato e 3.000 euros de reembolso de rendas. Sem este acordo, o caso só poderia ter sido resolvido em tribunal.

“Estamos a pedir aos inquilinos que carreguem o fardo de enfrentar os senhorios, mas o equilíbrio de poder não está claramente a seu favor”, diz Matthieu Verhelle, da organização francesa de direitos dos inquilinos APU de Fives.

“Ouvimos falar de casos em que as pessoas dizem ‘Se não gostas, então desaparece’. Os senhorios têm todo o poder e sabem que podem arrendar a outra pessoa já na próxima semana”.

“Os senhorios apercebem-se rapidamente de que podem ignorar os controlos do arrendamento sem arriscar nada”, acrescenta ele.

Os inquilinos ficam com a responsabilidade

Desde julho de 2021, quando a cidade introduziu um portal online para facilitar as queixas, só houve 130 queixas de inquilinos de Lille. Em 2021, houve apenas nove casos tratados pela agência local, e seis até outubro de 2022.

“Muito poucos inquilinos conhecem os seus direitos”, diz Anne Augereu, da agência local de informação sobre arrendamentos. “Há muitas pessoas que assinam os seus contratos sem sequer saberem que existem controlos de rendas”.

Outras, como Leo, outro estudante, não tomam medidas porque temem as consequências. A renda de Leo foi de 300 euros por mês acima do montante permitido, numa cave grande e húmida que foi utilizada como espaço de armazenamento pelos inquilinos anteriores.

“Não queríamos fazer [do nosso senhorio] um inimigo “, diz ele. “O risco [de o denunciarmos] seria torná-lo num obstáculo sempre que quiséssemos fazer festas ou se precisássemos de obras”.

O senhorio do estudante Quentin tmbém estava a infringir as regras, mas ele, apesar de pagar quase 100 euros a mais por mês do que devia, não quis denunciar o senhorio.

Uma multa em três anos

Em quase três anos de controlo de rendas em Lille, o governo local aplicou apenas uma multa. Isto deve-se em parte ao facto de, em todas as fases, o senhorio poder evitar a multa, resolvendo a situação.

Estas regras de pouco impacto levaram a uma reforma a nível nacional, dando à polícia local maiores poderes para aplicar multas aos senhorios, em vez de o governo local ser o único responsável pela aplicação da lei. Já está a acontecer em Paris. Mas o governo de Lille disse que não vai seguir este exemplo, por falta de verbas para financiar a aplicação da lei.

Em 2021, a renda média em Lille caiu pela primeira vez em vários anos. Mas pode levar muito mais tempo para se ver o real impacto do controlo de rendas sobre os preços.

“Se mais inquilinos denunciarem os problemas, então os proprietários não terão outra escolha senão cumprir as regras”, reflete Martin. Mas a aplicação das leis não pode ser deixada aos inquilinos. 

O caso de Lille mostra como é preciso ser cauteloso: mostra a necessidade de informação clara sobre direitos, informação sobre a aplicação da lei que efetivamente crie um desincentivo para os infratores das regras e leis rigorosas que não permitam aos senhorios encontrar lacunas legais.

Como diz Benjamin Tison-Beernaert, advogado da associação de defesa dos inquilinos CLCV: “Está tudo bem na criação da lei, mas é preciso também aplicá-la efectivamente. “

O que nos dizem as evidências internacionais?

Embora existam controlos de renda sob diferentes formas em muitas cidades de todo o mundo, isto continua a ser um tema polémico.

Os argumentos comuns são que terão um impacto perverso na oferta de habitação, uma vez que os proprietários vendem, ou impedem os proprietários de manter as propriedades em boas condições.

Existem certamente exemplos internacionais que mostram os riscos do controlo de rendas. Por exemplo, o congelamento das rendas em Berlim em 2020 foi celebrado como uma vitória dos inquilinos, mas foi considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, levando a aumentos das rendas e mesmo a que alguns proprietários exigissem pagamentos retroativos, o que deixou alguns inquilinos com enormes dívidas.

Um estudo de 2019 sobre o controlo de renda em São Francisco concluiu que esta medida reduziu o despejo dos inquilinos em 15%, mas também reduziu a oferta de habitações, porque os senhorios tinham mais probabilidades de vender ou reestruturar as suas propriedades.

Mas a economista americana JW Mason , da Universidade de Massachussets, argumenta que as provas demonstram que os controlos de rendas são eficazes na limitação dos aumentos, proporcionam estabilidade aos inquilinos a longo prazo, e que qualquer impacto na oferta de habitação para arrendamento pode ser resolvido através de limitações aos senhorios que convertem propriedades para outras finalidades.

O que vai acontecer em Portugal? Ainda não se sabe bem, até porque o diploma do governo está em discussão. Mas é importante conhecer o que aconteceu noutras cidades europeias para antecipar o que pode correr menos bem, e corrigir os erros.



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