Não é café, nem taberna – e é pena também não o ser – mas é uma livraria e boa numa calçada de Lisboa. De nome pedante, a livraria Snob é tudo menos isso: cultua a mais útil das invenções humanas, a palavra. Fica ao cimo da travessa de Santa Quitéria, ainda perto da Avenida Álvares Cabral, o que é promissor, porque navegar é preciso.

Na livraria Snob todas as últimas quartas-feiras do mês, ao fim da tarde, pratica-se o hábito de dizer poesia – aconteceu esta semana, dia 22, mais um encontro.

Quem organiza é o Clube Literário Kalunga, nome que se confessa como um livro aberto: em quimbundo, uma das línguas angolanas, mar diz-se kalunga. Para concluir as apresentações, eis o título da tertúlia: Poéticas Afro-Atlânticas em Lisboa.

Muito prazer, obrigado.

A tertúlia Kalunga com o músico Tonecas Prazeres e a poeta homengeada, Conceição Lima, Inocência Mata e o editor Zeferino Coelho. Foto: Jorge Trabulo Marques

A poeta homenageada no primeiro dos encontros, em setembro passado, foi a portuguesa Ana Luísa Amaral. O que demonstra que em Poéticas Afro-Atlânticas não se privilegia um dos três continentes banhados pelo oceano.

A tertúlia não é só de e para africanos, o nome é mera liberdade poética.

O encontro é de brasileiros, angolanos, portugueses e o mais mundo com a língua que lhes é comum. Às vezes extravasa um oceano, pois já lá esteve, por exemplo, Luís Carlos Patraquim, de Moçambique, que é Índico, e na livraria até já se foi além da língua, com poetas colombianos e peruanos.

Na Snob, os autores e os poemas navegam à bolina – o que quer dizer, velejam a contravento – confirmando que essa é a forma de ir mais longe.

Esta semana voltou a ser assim. A homenageada foi a santomense Conceição Lima (Santana, ilha de São Tomé, 1961).

A abrir, o angolano João Melo anunciou as funções seguintes. Ao que ali se ia fazer, ele chamou rio, quer dizer, kalunga, isto é, mar, oceano e até mais do que isso, enfim, língua que nos une.  Inocência Mata, professora da Faculdade de Letras de Lisboa apresentou a homenageada. Também santomense, Mata tem daquelas vozes poderosas que o traquejo académico cultiva e em algumas gargantas negras evocam Mahalia Jackson. Fomos preparados para um gospel.

Tonecas Prazeres pegou no violão e enfileirou uma morna de Cesária Évora com uma canção do N’Gola Ritmos, atravessou o rio junto à serra do Pilar (com pronúncia tripeira) e daí (com Elis) levou-nos à Nossa Senhora Aparecida. Evidentemente o cantor espalhava uma mancha abençoada, atravessando fronteiras, como aquela tertúlia gosta.

Outros poetas passaram pelo único microfone da sala, com os poemas que lhes deram na gana. A língua foi comum, mas o dizer seguiu regionalismos e modas. Uns diziam, simplesmente dizendo, coloquiando, por exemplo, como os bons cronistas brasileiros sabem fazer, outros declamavam, acentuando a teatralidade.

No braço de uma poltrona estava pousado um pequeno livro de Sebastião da Gama, como a sublinhar que quem com ele se cruza ao acaso, pensa em Serra-Mãe. Era um pormenor de subtil ironia.

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Vídeo de Jorge Trabulo Marques

É que da terra da homenageada Conceição Lima era também Mário Domingues (1899-1977), que, ao tornar-se lisboeta, foi talvez o nosso escritor mais fecundo. Ficção, romances policiais, biografias históricas, reportagens na cidade. Santomense de nascimento, de mãe negra angolana e personalidade cultural lisboeta, Mário Domingues fez da vida uma moderna última quarta-feira de mês, na Snob. Dele ainda no ano passado, quase meio século depois da morte, a Tinta-da-China publicou uma recolha sobre A Afirmação Negra e a Questão Colonial.

Na livraria, o livrinho solitário nos braços de uma poltrona como que nos remetia, por contraste, para um cálculo: em que prateleira da Snob não cabiam os mais de 150 livros de Mário Domingues?

João Melo dissera de Conceição Lima: “Uma grande escritora, ponto”.

E lembrou que um poema dela venceu, em 2021, o prestigiado prémio internacional do website WWB-Words Without Borders, Palavras Sem Fronteiras. O website traduz as palavras com fronteiras por todo o mundo para que elas se alarguem até à maior das fronteiras, o inglês. Da obra de Conceição Lima disse o júri: “Esta tradução premiada assombra.”

Sorte a nossa, assombro até, que numa pequena livraria da travessa de Santa Quitéria, em Lisboa, tivéssemos, sem fronteiras nenhumas, as palavras da santomense. Nenhumas? Cuidado, porque nada é definitivo, preto ou branco, sobretudo no mundo misturado de que temos estado a falar.

Esta quarta-feira, Conceição Lima começou por lembrar dois patrícios dela: Alda do Espírito Santo e Francisco José Tenreiro.

Não foi dito, e certamente nem era obrigatório que fosse dito num fim de tarde poético, que Alda do Espírito Santo viria a ser presidente da Assembleia Nacional do seu país independente e Tenreiro, quando morreu, em 1963, tinha duas legislaturas de deputado na Assembleia Nacional… colonial. Ela e ele foram citados por Conceição Lima, e bem, por serem ambos marcos da literatura de São Tomé.

Acrescente-se, porque isso é assunto, trave-mestra até numa sessão sobre Poéticas Afro-Atlânticas, que Francisco José Tenreiro foi coautor, com o angolano Mário Pinto de Andrade, da seminal Poesia Negra de Expressão Portuguesa, em 1953.

A primeira antologia de autores que, sim, escreviam em português, mas, outrossim, eram também negros. O primeiro livro de Tenreiro, Ilha de Nome Santo,foi dedicado à mãe, negra contratada, desapossada do seu menino, que a mando do pai, administrador da roça, veio para Lisboa com três anos para ser educado por uma tia branca.

Pronto, eis a santomense negra Conceição (porque nasceu a 8 de dezembro, dia da Nossa Senhora da Conceição) Lima (porque os filhos das filhas dos filhos dos trazidos da Costa de África para a ilha perderam os nomes na viagem obrigada), poeta consagrada.

Que nos trouxe Conceição Lima, numa quarta-feira de fim do mês, a uma pequena livraria de Lisboa?

Ela leu um poema longo do seu segundo livro publicado (A Dolorosa Raiz do Micondó, 2006). O poema chama-se Canto Obscuro Às Raízes, repetindo a palavra que define a aflição por uma procura vã: de onde venho? Aqueles que tanto sabem da História, tanto sabem que a ensinam, a sua, aos outros, ganhariam em escutar a poeta.

A poeta Conceição Lima na tertúlia Kalunga. Foto: Jorge Trabulo Marques

Disse Conceição, no poema: “Eu que tanto sabia mas tanto sabia/ de Afonso o chamado Africano”… E “Eu que presenciei o milagre das rosas/ Eu que brinquei a caminho de Viseu”…

Não teria ela o direito de saber quem era o avô?

Nem procurando: “Em Libreville/ não descobri a aldeia do meu primeiro avô”, assim abre o poema. Conceição foi à capital do país continental fronteiro, o Gabão, de onde vieram os escravos que plantaram as roças de São Tomé.

Dali veio o seu “primeiro avô”, porque o último do continente, ao qual nunca voltou. E não há traços nem rastos.

Conceição reinventou-se com ficções dos outros. O romance Raízes, A Saga de Uma Família Americana, do negro-americano Alex Haley, recriou uma procura “conseguida”. Traçou a pista e a árvore genealógica do jovem Kunta Kinte, escravizado no século XVIII, na África Ocidental, e trouxe-o até aos dias do escritor Alex Haley, que seria seu neto em quinto grau. Adaptado para televisão, Raízes exponenciou a popularidade da saga. Vê-se bem com pipocas, mas amargura quem esbarrou na procura de raízes.

São versos de Conceição: “O meu oral avô/ que não se chamava Kunta Kinte”, “Ele que não odiou a brancura dos algodoais”, [pois não chegou ao Alabama e ficou-se por uma ilha no meio do Atlântico nas roças de cacau], “Na curva onde aportou/ a sua condição de enxada”, “Ele que foi sorvido em chávenas de porcelana”…

O “meu trazido primeiro avô”, “o meu oral avô/ não legou aos filhos/ dos filhos dos seus filhos/ o nativo nome do seu grande rio perdido”, levou Conceição Lima, “Eu, a peregrina que não encontrou o caminho para Juffure”, a tornar-se “Eu, a nómada que regressará sempre a Juffure”.

E assim acaba o poema da poeta santomense: em Juffure, uma aldeia da Gâmbia, na costa da África Ocidental, onde o jovem Kunta Kinte foi escravizado e levado. É um belo e poderoso canto, mas é um canto desesperado.

A voz de Conceição Lima é acentuada e silabada como a de uma profissional da BBC, que ela foi, no Serviço em Língua Portuguesa. A escrita de Conceição Lima é limpa como a de uma companheira de foto (numa praia em São Tomé?), Sophia de Mello Breyner:

Neste fevereiro, na última quarta-feira, Conceição Lima disse um belo poema a Lisboa, a força das vozes é estas aportarem diferenças. Deu Lisboa esperança à Conceição Lima de um dia irem juntas à bolina à procura do primeiro avô dela, seu eterno continental avô?

Ferreira Fernandes

Nasceu em 1948 em Luanda. Jornalista – um ponto é tudo.

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