Hoje, se algum desses jovens artistas que por aí grassam (sobretudo depois de tantos concursos televisivos caça-talentos) abrisse um livro de um poeta conhecido e dele resolvesse surripiar um texto, pôr-lhe uma música e cantá-lo em concerto, em disco ou mesmo em directo na rádio ou na televisão sem dar cavaco, cairia – não tenho dúvidas – o Carmo e a Trindade.

E com razão – onde já se viu tamanho desrespeito pelo autor, que tem todo o direito de não querer ser cantado por aquela voz ou outra qualquer?

Porém – espantem-se! –, nem sempre foi assim: nos finais dos anos quarenta, o poeta Pedro Homem de Mello foi avisado de que Amália Rodrigues andava a cantar palavras suas; e não tinha sido consultado…

Ao folhear uma recolha de poemas do autor portuense, a grande senhora do fado descobrira um texto intitulado “Naufrágio” por que logo se apaixonara; era demasiado extenso e algo irregular para caber no exigente espartilho do fado tradicional, mas nem por isso deixou de o ouvir dentro da sua cabeça com a melodia do Fado Tango, de Joaquim Campos.

E não esteve com meias-medidas: com ajuda ou sozinha – mistério que, segundo o seu biógrafo, Vítor Pavão dos Santos, permanecerá eternamente por desvendar –, cortou estrofes, emendou versos, substituiu palavras (é célebre a troca de “adeus” por “Deus”) e até teve a ousadia de dar à sua versão um título diferente, criado – menos mal – a partir de uma expressão do próprio poema.

Tudo isto, bem entendido, sem avisar Homem de Mello; e o resultado foi o incrível “Fria Claridade”, fado que está seguramente entre os mais belos que Amália cantou.

E o que fez o poeta quando finalmente tomou conhecimento e foi ouvir o seu poema na voz da fadista? Zangou-se? Esperneou? Ficou fora de si? Entendeu que tudo aquilo tinha sido um abuso inqualificável e não mais dirigiu a palavra a Amália Rodrigues, de quem era, ainda por cima, admirador confesso?

Nada disso: telefonou à fadista, verdadeiramente extasiado com aquele corte e costura que ela exercera em cima dos seus versos, e ainda a felicitou por ter conseguido o milagre de aproximar a sua poesia do público, de a levar até ao povo!

E depois ofereceu-se para lhe escrever letras de raiz e para adaptar outros textos seus, dos quais o mais famoso é “Povo Que Lavas no Rio”.

Pode pensar-se que semelhante atitude se deveu apenas ao facto de Amália ser realmente um talento elevado à potência máxima, e de não haver poeta que não gostasse de ouvir os seus versos brilharem naquela voz inconfundível.

Mas não.

Em 1987, estando Amália em Coimbra a autografar a sua biografia, alguém lhe terá dito que um otorrino chamado Adolfo Rocha tinha consultório num dos andares do prédio onde se encontravam. Ora, Adolfo Rocha era o nome verdadeiro de um grande poeta que assinava com pseudónimo…

Entusiasmada com a descoberta, logo a diva pediu que avisassem o médico-escritor de que gostaria de o cumprimentar; Miguel Torga, porém, recusou-se a recebê-la, dizendo que não tinha o mais pequeno interesse em conhecer Amália Rodrigues.

Misantropia? Raiva ao fado? Má-educação? Ou simplesmente ciúme por ainda não ter sido cantado por ela?


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.


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