Os episódios de chuva intensa e persistente puseram à prova a rede de coletores de água debaixo do chão de Lisboa. No final de dezembro, tinham-se registado 44 situações de abatimento de piso ao longo dos cerca de 1430 quilómetros de extensão da rede, muitas das quais em consequência do colapso de coletores.
Entretanto, e porque muitas vezes o abatimento de um coletor é invisível até que se abra um buraco no chão, o piso tem continuado a ceder, cidade fora – como é exemplo em Alcântara, onde uma das faixas do final da Av. de Ceuta está interdita, com enormes rachas no Alcatrão, mas também a Rua da Prata, encerrada à circulação automóvel há semanas.
A Rua da Prata continua em obras. Aqui, peões, elétricos, autocarros, bicicletas e automóveis circulam diretamente por cima de um dos coletores pombalinos, cujas paredes têm vindo a ceder ao longo das últimas décadas. Na Avenida Infante Dom Henrique, o colapso das paredes de um coletor obriga há semanas ao corte de várias vias.
As obras de reconstrução dos coletores a decorrer na Rua da Prata e na Avenida Infante Dom Henrique prolongam-se agora por várias semanas, encerrando alguns dos mais relevantes canais de circulação da cidade.
São casos de manutenção reativa – acontecem em resposta ao colapso, explica Rafaela Matos, engenheira, investigadora, e especialista em hidráulica e gestão de águas pluviais no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC).
A pressão da construção na cidade, a falta de um cadastro atualizado da rede de coletores e a “ausência de uma prática sistemática e continuada de reabilitação preventiva” são alguns dos fatores que podem estar a contribuir para a situação atual.
O custo de uma manutenção preventiva pode mesmo ser menor do que o da resposta de emergência, como a que hoje se verifica e obriga a demoradas e onerosas obras de reconstrução, diz Rafaela Matos.
O LNEC está a trabalhar com a Câmara Municipal de Lisboa (CML) num trabalho de inspeção dos coletores de maior dimensão da rede da cidade e que se destina a dotar o município de melhor conhecimento da rede.
O que explica a sucessão de episódios de colapso por toda a cidade?
Não conheço as situações no terreno, mas posso dizer-lhe o seguinte: em termos teóricos, há essencialmente duas razões possíveis principais para que haja assentamento [colapso] de coletores, no limite com colapso da via.
Uma razão possível [para o colapso] pode ser uma deficiente condição de assentamento do coletor, mas quando uma obra é feita, é sujeita a fiscalização que verifica as boas condições de execução, com a vala aberta, antes da receção pelo dono de obra. Quando se instala, em vala aberta para o efeito, há que respeitar as condições que estão regulamentadas. São camadas, de material granular, fazendo uma cama de assentamento do coletor e posterior enchimento da vala com material que deve ser compactado, antes do fecho daquela.
A outra situação é a falta de manutenção. Por falta de financiamento, por falta de recursos humanos. A partir do momento em que é instalada, uma rede tem de começar logo a ser mantida. Nas cidades modernas, essa manutenção é preventiva.


Um coletor também pode abater porque a resistência estrutural foi violada. Está sujeito a pressões internas e a pressões externas, ao longo do tempo. Pressões de tráfego que superam as inicialmente previstas, assoreamento por efeito de maré, infiltrações ou exfiltrações podem estar na origem de fissuras, de descontinuidade nas juntas, que vão fragilizando a infraestrutura.
A partir do momento em que uma rede é construída e instalada, deve começar logo a ser mantida. Nas cidades modernas, as atividades de inspeção e reabilitação [devem ser] preventivas e continuadas. [Devem] Obedecer a planos de médio e longo prazo, a chamada gestão patrimonial de infraestruturas ou gestão de ativos. É uma questão imperiosa de boa prática.
Há um envelhecimento natural dos materiais e das redes, e quando a sua idade aumenta, há que cuidar mais e melhor, para que a sua vida útil possa ser prolongada. A geriatria também se aplica às redes de coletores da cidade.
Estes abatimentos podem ser evitados?
Não sei se podem ser evitados, mas os efeitos podem ser mitigados, nomeadamente através da observação e da inspeção sistemática e continuada, que permite atuar preventivamente.
Os abatimentos de piso um pouco por toda a cidade estão a acontecer por falta de manutenção?
O que acontece, em muitos casos, é que não sendo feita [a manutenção], anda-se atrás daquilo que acontece. É uma atuação reativa. Hoje em dia, com a construção desenfreada, constrói-se mais um prédio, abrem-se e fecham-se valas a grande ritmo. Acredito que haja menos recursos para fiscalizar, mas não fazê-lo tem custos muito grandes no futuro. Há ferramentas para atuar preventivamente. Primeiro, um bom projeto, uma boa instalação e, depois, uma boa e continuada manutenção e reabilitação.
Como é que devemos manter a rede de coletores?
Para manter, tenho de começar por conhecer a rede. Em Lisboa, pelo menos quando se fizeram os estudos hidráulicos de drenagem da baixa pombalina [nos anos 1990] houve que efetuar levantamentos e reconhecimento de uma parte da rede. Fizeram-se investimentos em alguns dos pontos prioritários e houve intervenções de reforço, mas provavelmente não todas as que foram sugeridas.
Uma cidade tem de ter um cadastro da rede atualizado. Os prédios são construídos, há novas ligações, há novas caves e há alterações que devem ser registadas para conhecimento e memória futura. É uma disciplina que as cidades têm de ter.
Uma rede é projetada para durar 40 ou 50 anos. Mas ninguém pensa hoje que uma rede, ao fim de 50 anos, vai ser retirada ou substituída. Não é possível. O que é que acontece? O princípio, hoje, é o de que uma rede deve durar uma vida. Para durar essa vida, tem de ser mantida com um plano de reabilitação estratégico.
Nas cidades mais modernas, [deve] reabilitar-se estrategicamente – verificar-se se precisa de ser intervencionada – 1% a 2% da rede. Ou seja, se vistoriar e reabilitar 2% da minha rede que tem, em geral, centenas de quilómetros, isso quer dizer que ao fim de 50 anos tenho uma rede reposta.
É essa a abordagem desejável… Obriga a investimento, mas é possível. Tecnicamente, é isso que deve ser feito. A gestão patrimonial de infraestruturas, se formos fazer as contas ao que se gasta hoje em emergências e a correr atrás do prejuízo, se calhar é mais do que aquilo que seria se houvesse uma programação [da manutenção].

Há hoje tecnologia própria para inspecionar os coletores, alguma até não intrusiva e há métodos de reabilitação não intrusivos, que não obrigam à abertura de vala. São sondas especiais, associadas a tecnologia de vídeo. Para os coletores de maior dimensão, visitáveis, há a inspeção visual, com técnicos dentro dos próprios coletores. É isso que se está a fazer no grandes coletores da cidade.
Na Rua da Prata, são vários os episódios de abatimento do piso e de colapso do coletor pombalino, com séculos. Como se explica esta sucessão de desastres, ao longo das últimas décadas?
No caso concreto da Rua da Prata, o LNEC fez o estudo hidráulico[no final dos anos 1980]. Foi feita uma análise das condições de funcionamento hidráulico da rede de coletores das bacias que convergem para a Baixa Pombalina e da própria rede da Baixa Pombalina, com um modelo de simulação hidráulico.

Isso hoje é possível de fazer-se. Posso ter um modelo de simulação que hoje me simula as condições para a precipitação que acontece de 50 em 50 anos, para verificar onde é que havia problemas se ocorresse uma precipitação deste tipo, mas também para determinar o impacto de substituir o coletor por outro de maior dimensão.
Na altura, foi talvez das primeiras utilizações de modelos de simulação em redes de coletores em Portugal. O modelo de simulação da Baixa Pombalina abrange as três grandes bacias que drenam para a Baixa Pombalina: Avenida da Liberdade, Rua das Portas de Santo Antão e São José e a [Avenida] Almirante Reis. A Rua da Prata é o coletor que está a jusante da bacia da Almirante Reis, que é a maior de todas, a que se junta o efeito de maré.
A situação dos coletores da Baixa alterou-se, entretanto?
Houve ali muitas mudanças que não conheço e na altura até tinha feito uma sugestão num relatório: quando foi reabilitado o Martim Moniz e criado o parque de estacionamento, devia ter-se feito aí, na altura, uma bacia de retenção subterrânea, como foi feito em Barcelona. Ao criar condições para encaixar os caudais mais elevados vindos da bacia da Almirante Reis, era possível restituir a jusante, de uma forma faseada, caudais mais baixos e compatíveis com a maré. Também há o problema da maré e a maré vai até ao Rossio.
Na altura, o coletor da Rua da Prata era um coletor pombalino. Era um coletor de pedra, muito bem feito à data, pedra sobre pedra, mas é um coletor muito antigo, com perto de dois séculos.
Em reunião da assembleia municipal, no passado dia 10 de janeiro, a vereadora com a pasta das obras municipais, Filipa Roseta, confirmou a antiguidade da infraestrutura e assumiu que as obras que agora decorrem têm como objetivo refazer “o colector pombalino que estava lá desde o século XVIII”.
O que é que acontece ali quando chove de forma intensa e persistente?
O que é que acontece? Desconheço a situação no concreto, mas como aquela zona tem caudais elevados vindos de montante e efeito combinado de maré, a que se pode associar sobrecarga do tráfego sobre o pavimento, algumas pedras poderão ter-se deslocado, abrindo brechas e fissuras.

Por outro lado, os coletores estarão naturalmente assoreados, têm areia. Quando entra a maré, entra a areia e isso é um peso adicional e diminui a secção útil de passagem do escoamento. Com água por cima, água por baixo, provavelmente toda a zona de assentamento fica muito lavada. Se os coletores ficam sem cama, se as areias começam a descompactar e a sair, a descalçar o coletor, ele racha e parte. Uma inspeção está a decorrer, e o diagnóstico e posterior intervenção serão feitos certamente.
Como é que se assegura que estes abatimentos não voltam a acontecer?
Isto só se combate com uma observação in situ. Pode ser visual, em coletores que são visitáveis, mas também com outras técnicas de inspeção, precisamente para diagnosticar e especificar as condições em que está o coletor. Conhecendo a condição estrutural do coletor, é possível identificar com que métodos se deve intervencionar. Essa avaliação indica o nível de risco e como é que se pode atuar.


A intervenção reativa tem custos elevadíssimos, mas acredito que seja muito difícil hoje em dia, com o tipo de ocupação de solo da Baixa, fazer obras.
Não é possível hoje conciliar o crescimento das cidades, que está a acontecer e vai continuar a acontecer, com uma forma de encarar a drenagem urbana como antes. Os coletores enterrados têm de ser mais bem olhados.
Com o plano de drenagem, a cidade vai responder melhor a cenários extremos de precipitação?
Vai certamente, [mas] estes túneis não vão resolver tudo. Vão resolver uma grande parte da zona baixa da cidade, sim, porque vai desviar as águas que não têm capacidade de transporte naquela zona. Mas há zonas a montante onde há problemas.
Os túneis não vão atuar em Benfica. E aí o que é que acontece? As zonas mais críticas têm de ser olhadas e num mecanismo de inspeção sistemática, são identificados, classificados e qualificados os pontos mais críticos. É nesses pontos mais críticos que tem de começar a atuação e, nos mais críticos, aqueles em que o impacto da reabilitação pode ter mais efeito.


Quando uma obra começa, tem de saber-se exatamente onde é que vai ligar [com os coletores e] quais os constrangimentos que tem e isso exige cabal conhecimento do cadastro da rede e fiscalização para quue tudo seja seguido de acordo com as boas práticas.
Tem que haver uma mudança nesse sentido, porque aquilo que não se conhece não se pode melhorar. É preciso conhecer e atuar preventivamente.
Temos que permeabilizar mais, através de espaços e corredores verdes, as designadas soluções de base natural, temos de criar mais descontinuidade entre áreas permeáveis e impermeáveis, e isso a cidade de Lisboa fez nos últimos anos. Por isso, ganhou, muito justamente, o notável reconhecimento de Capital Verde Europeia 2020.

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
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