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A vida tem das suas: Gao Xiaoman e Maoyan Liao não se conheciam quando trocaram a China por Portugal, já lá vão algumas décadas. Tornaram-se amigas em Alcântara, onde cada uma mantém um pequeno comércio e, agora, bafejadas pela sorte típica dos anos regidos pelo coelho no horóscopo chinês, também serão vizinhas de hortas.
Gao, Mayon e outras três dezenas de lisboetas foram contemplados no primeiro sorteio público realizado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), que dotou 37 pessoas com um talhão de 50 metros quadrados, localizados no terreno com 1.58 mil metros quadrados no Instituto Superior de Agronomia (ISA), na Ajuda.
A nova horta já está pronta para ser plantada. Fica próxima da entrada pela Faculdade de Medicina Veterinária, vizinha a um campo de râguebi e junta-se a outras duas já em funcionamento no ISA, dedicadas aos alunos da instituição e aos funcionários reformados do instituto.

A possibilidade de ter uma horta “com vista para o Tejo”, como referia o convite, levou pouco mais de meia centena de interessados a responderem ao edital publicado em novembro de 2022, fruto de um protocolo entre a CML e o ISA, na primeira vez em que os futuros donos de um talhão foram indicados através de sorteio.
A sorte dos futuros hortelãos
“Até então, os procedimentos contemplavam outros fatores, como a distância da morada do interessado em relação à horta, a experiência anterior no trabalho com a terra ou até, nos casos de reordenamento de hortas irregulares, o tempo que o hortelão ocupava o local”, explica a responsável da CML, Luísa Martinez.

Como a horta em questão brotou do zero, foi necessário criar outros parâmetros de escolha e o sorteio pareceu mais justo. E assim, no dia 11 de janeiro cerca de 40 candidatos acompanharam no Auditório da Lagoa Branca, no ISA, as pedrinhas com os números dos futuros hortelões e dos respectivos talhões chacoalharem no saquinho.
Um sorteio muito semelhante aos dos que definem os grupos nas competições de futebol, sem a mesma pompa ou balançar dos quadris de uma estrela pop, é verdade, mas com a mesma expetativa e ansiedade envolvidas. Após cerca de meia-hora, os 37 novos felizardos já estavam definidos, assim como os 16 suplentes.
Cada novo hortelão terá o usufruto vitalício do talhão, ao custo anual de 60 euros. Em troca, além da terra fértil, contarão com uma estrutura física para guardarem o material de trabalho, água para a rega, manutenção do espaço e oficinas de horticultura ministradas pela CML.
“Haverá, claro, obrigações por parte do hortelão, previstas no regulamento e que, caso não sejam cumpridas, poderão levar à perda da horta. Eis a razão de se sortear suplentes”, explica Luísa.

Por ironia, os dois candidatos presentes e sorteados para atestar a idoneidade do pleito e retirarem as pedras com os números dos futuros hortelãos acabaram não sacando os próprios números do saquinho.
Amigas em Alcântara e agora vizinhas de “horta”
Sorte tiveram as amigas chinesas e as pedrinhas indicaram os talhões 5 e 6, o que faz com que Gao e Mayon sejam literalmente vizinhas de porta, ou de horta. Irão dividir torneiras, sementes, experiências e o conhecimento já que, ao contrário de Gao, Mayon nunca pôs a mão na terra quando vivia na China.

Aos 55 anos, Gao Xiaoman já era camponesa quando migrou da China para Portugal, em 2008. Em Alcântara, espremida entre o Tejo e os prédios, não viu hipóteses de continuar a arar a terra e manter a vida guiada pelas estações do ano. A alternativa foi a mesma de tantos outros seus conterrâneos: abrir uma lojinha chinesa.
Na sua lojinha, Gao mantinha pás e regadores nas prateleiras, mas destinados a outros hortelões, um cenário prestes a mudar. “Vou poder voltar a ter a minha hortaliça”, comemora, com a economia de palavras típica dos orientais.
A intenção de Gao é aproveitar ao máximo e dedicar uma parte do dia à atividade que, literalmente, remete-a à terra.
Maoyan Lion acompanha o entusiasmo da amiga com um pé atrás. Vinte e cinco anos após chegar a Lisboa, a chinesa vai pela primeira vez nos seus 59 anos cavar, semear e regar uma horta. “Ela já disse que me vai ajudar no início”, diz, em relação à futura vizinha, que confirma a informação com um balançar de cabeça.
A colheita, assim como no caso da amiga mais experiente, será destinada ao consumo doméstico. “Vou plantar legumes e frutas”, anuncia Gao. “Quero plantar morangos”, revela a amiga Maoyan, sem esconder a felicidade estampada no sorriso.
O retorno à terra em plena Lisboa
Feliz também estava Amélia Luís, que há dois anos trocou a vida no campo numa vivenda nos arredores da Guarda por um apartamento no Alto dos Moinhos, em Lisboa. “Vim para cá cuidar de uma neta”, explica a nova dona de um talhão no ISA, uma das poucas que se dispôs a caminhar do auditório à futura horta após o sorteio.

Amélia é da equipa das hortelãs com experiência: na Guarda, arava uma área com cerca de três vezes o tamanho da horta que terá em Lisboa. “Faz-me falta o contacto com a terra, com a natureza, e decidi participar do sorteio para voltar a ter um momento para descontrair e pensar”, conta.
A adaptação ao novo clima lisboeta não será um problema para a experiente hortelã. “Pelo contrário, aqui em Lisboa o clima é melhor do que na Guarda. Há mais sol e menos frio. Lá, em pleno abril, às vezes uma geada apanhava-nos e partia as mudas que estavam a brotar”, relembra.
Voltar a colocar as duas mãos ou, no caso, as quatro mãos na terra também é o desejo de Joaquim Gaspar e Maria de Lourdes, 71 e 67 anos, os novos proprietários do talhão 22. O casal que deixou Piódão para ganhar a vida em Lisboa “há muitos anos” agora vai aproveitar a reforma para o aguardado retorno a uma certa origem rural.

“Uma plantação de batatas, alho e cebolas”, enumera Joaquim, sob o olhar da mulher. A curiosidade sobre como será a possível divisão de tarefas no futuro talhão é sanada com uma resposta no melhor estilo casal que planta unido, permanece unido.
“Tudo na vida fomos os dois que fizemos. Na horta, não será diferente, vamos continuar a fazer tudo juntos”, diz Joaquim, provando que o amor semeado há 40 anos ainda é capaz de dar os seus frutos.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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