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Isto passou-se na Estrada de Benfica. Por razões que aqui não cabem, eram duas da tarde e eu com birra de fome. Ainda pensei no croissant com café, mas era coisa pouca para uma vontade de comer tão grande. E, quando faço birra, o melhor é meterem-me dez quilos de batatas à frente. Pela minha saúde, mas também pela dos outros. Fui ao bitoque.
Na esplanada, estava um tipo. Eu, que não sou de preconceitos, senti que bastava olhar para ele para saber o que diria. A figura era a de sempre: fato azul, armado em chique; camisa por dentro, armado em bom; barriga para fora, à bon vivant. Ouvi a conversa toda não por me meter na vida dele mas porque era impossível ignorar aquele exagero de decibéis ali metidos. O que dali saiu durou a ingestão de um bitoque sem salada.
Um gajo quando fala alto, em tom de bazófia, já denuncia que vai dizer coisas estúpidas. Isto foi provado não por um centro de investigação de Sociologia, mas por mim, que vi a vida a acontecer sem código deontológico ou procedimentos metodológicos. Não sei como se chamava o tipo, mas tinha cara de Zé António, e por isso fica assim.
Ora, o Zé António tinha falado com um brasileiro. Também não sei o nome, por isso vai Rivaldo. O Rivaldo, na opinião do português, devia ser um burro. Amigos não seriam, tal era o tom com que falava dele.
O Rivaldo tinha dito que a Europa tinha roubado muito ouro ao Brasil. Os portugueses eram uns gatunos, os brasileiros eram as vítimas de uma colonização que passou por fofa. E o Zé António contava a história, com cara de quem meteu três golos, a um desgraçado que concordava com tudo o que ele dizia. Meio bêbedo (ao almoço!), desconfio que nem percebia metade.
O português meteu os pontos nos ii ao brasileiro: “És tão ladrão quanto nós! És descendente de europeus, tal como nós. Ensinam-vos no Brasil a dizer mal de nós.” O outro deve ter ficado caladinho, principalmente ao ouvir o argumento irrebatível: “Um país com tráfico de drogas!” Um país com tráfico de drogas tem de baixar a cabecinha aos outros. E o portuga continuou, perguntando, à gozão, ou seja, na zoeira: “És de que tribo? Guapé?” E esclareceu ao amorfo à frente dele: “Disse-lhe logo as três principais tribos da Amazónia, que eu conheço-as.” “O gajo ficou logo todo encavacado”, assegurou, e eu acredito que sim, uma vez que Guapé é o nome de um município, cujos primeiros habitantes eram da nação Catágua.
O Zé António ria muito, que é o que faz quem se acha com muita graça. Parecia que constatava o óbvio – talvez o óbvio ululante, mas ele nem devia saber quem era o Nelson Rodrigues. E sacudia a água do capote: “Os avós dele é que eram ladrões!”
Claro que os problemas têm raízes, que sem irmos às raízes não damos cabo de nada, e o vaticínio estava ali: “O problema disto é o Brasil ser independente há muito tempo.” Não que o Brasil não sirva para nada, atenção, porque “que os gajos são bons a jogar à bola, são”, mas aquilo já não é o que era dantes. Nós bem sabemos como era: era o Macaranã a fazer a vénia ao Pelé. Agora, temos coisa pouca, “o que interessa é o Neymar, e que catano interessa o Neymar, se o gajo está sempre lesionado?”
Pesaroso, o Zé António concluiu: “O Brasil que deixámos não é o Brasil de agora. Os gajos aumentaram o terreno desde que saímos de lá. Mas nós conseguimos manter o terreno. [Heróis!] Eu conheço muito bem Moçambique, sabe? [E não só. É Moçambique, Portugal, Brasil, talvez até Akoroa.] Deixámos o país riquíssimo, os gajos é que se roubaram uns aos outros e estragaram tudo. A gente puxa pela nossa História e pela nossa inteligência. [Eu bem o vi a esforçar-se.] Temos cultura, e cultura é coisa que eles não têm. E nós temos nove – nove! nove! – séculos de História. Isto desde a fundação do país, claro. Antes disso, já tínhamos as nossas culturas cá – dos romanos, de tudo. Mas como país temos nove séculos. E temos muita ascendência. Eles não, coitados.”
Realmente, coitados. E coitado do Rivaldo – primeiro, acusado de ter a nossa ascendência; meio bife depois, de ser filho de ninguém. Por isso é que era fácil entalá-lo.
“Eu gosto de ouvir esta mocidade. Um gajo manda-lhes factos e eles ficam logo à toa. Basta ver os livros da História de Portugal. Está lá tudo. Vais lá e encontras [SPOILER] a nossa História.” E realmente a História portuguesa é única de Portugal, uma vez que “nem os americanos têm coisa assim”. Os neo-zelandeses, por exemplo, são outros que não têm a História portuguesa. É uma coisa que parece afecta à portugalidade, não sei bem.
Os norte-americanos são iguais. É sempre muito paleio, é sempre muita conversa, mas no fim o resultado é outro. O Zé António bem dizia: “Têm arranha-céus? Têm. [E nós com as Amoreiras.] Têm economia? Têm. [E nós com o SNS.] Mas não têm a nossa cultura. [Nisso, são iguais aos ruandeses.]
Portugal é o maior. Lisboa é a capital do império. Portugal fala a língua do Cristiano Ronaldo – e vice-versa. Portugal joga à bola melhor do que o Messi. No Brasil, ninguém percebe nada de fado. No Brasil, ninguém sabe o que é um frigorífico. No Brasil, ninguém percebe ou sabe nada, porque o Brasil são os outros e nós somos portugueses. No Brasil, está tudo condenado à miséria, “porque os brasileiros não querem trabalhar.” Ora, assim sendo, “Como é que desenvolvem o país? Aquilo é só samba. [Eu bem disse que eles não topavam nada de fado.] É só Carvanal, só descanso, só tráfico de drogas. [E o desgraçado do intoxicado por etanol a ouvi-lo.] Ali há muita escumalha.”
Depois, o Zé António parou de rir, eu parei de me entupir de batatas fritas, desejando que a minha audição fosse tão má quanto a visão, e decidi tomar café em casa. Desde aí que me parece um perigo pôr sequer um pé na rua.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.