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“Sou uma pessoa da noite”, diz sorrindo Solmaz, enquanto vê, no Cais das Colunas, o sol a pôr-se para lá da Ponte 25 de Abril. Gosta deste lugar. Sempre que tem folgas do trabalho, esta iraniana de 29 a trabalhar numa empresa de transportes em Oeiras, sai com os amigos “para os sítios mais turísticos de Lisboa”. O Terreiro do Paço ou a Baixa.

A primeira morada de Solmaz em Lisboa foi na Avenida da Liberdade. Quando pesquisou o nome, tremeu de emoção, pareceu-lhe o sinal de que tudo iria correr bem. Ela vinha à procura da liberdade e encontrou-a logo ali. Não podia ser só uma coincidência.

E não foi. Hoje, faz tudo o que não podia fazer no Irão. “Gosto de ouvir música ou ir a um café”, diz Solmaz. É uma “desforra” dos 25 anos que passou num lugar onde se proíbe “tudo o que é divertido – dançar, fazer festas, estar com amigos ou beber”. Sob o peso da Lei Islâmica.                             

No Irão, não existem discotecas. O convívio entre homens e mulher é proibido. E a venda de álcool também. 

Solmaz explica que os iranianos encontraram formas de fintar as regras: aprenderam a fazer festas ilegais e a esconder vinhos em buracos da casa – e a deitá-los sanita abaixo, à visita da polícia, como mostra o clássico Persépolis, de 2007.

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Mas ela, nunca participava nessas festas. “Apesar de querer. Preferia ficar em casa, calma e em paz do que com medo que a polícia aparecesse”, recorda. “Aquilo é um stresse, estão sempre a dizer «vêm aí, vêm aí».”

Para quem sai do Irão, a vida noutros países parece um filme. “Numa viagem à Turquia, lembro-me de ver os preços do álcool e ficar chocada. Eram tão baratas! No Irão, bebidas só existem no mercado negro e são caríssimas”, conta. “Sei que quando partilho isto dá vontade de rir. Parece algo ridículo, de outro mundo. Mas para nós tem muitas dores.” 

E foram essas dores que a fizeram sair, em 2018.

Fugiu. “Eu tinha os problemas que todas as iranianas têm e que conduziram à morte de Mahsa Amini. As mulheres iranianas têm medo, todos os dias.”

Não era de ontem. Era de sempre. Solmaz conta que sentiu, desde pequena, a revolta a germinar. “Via que os meus dois irmãos, mais velhos, tinham mais liberdade. Eu ralhava. Questionava o porquê de eles poderem fazer coisas que eu não fazia, como voltar para casa mais tarde, depois de um dia de aulas”, recorda.

Solmaz em pequena, no Irão.

“Não é que o meu pai quisesse que assim fosse, são as regras. Se me fizessem mal, a culpa não era do atacante, era minha e da minha família. Porque as filhas são para estar fechadas, dizem.”

Mas foi quando Solmaz entrou na Faculdade de Direito, no Irão, que o sentido de injustiça ganhou outra dimensão. “Tinha de me reger por uma lei que desrespeita as mulheres. Pela primeira vez, senti-me cansada.”

Quatro anos depois, ainda lhe custa falar do dia em que fez essa viagem, rumo à liberdade. Do outro lado do mundo, em Lisboa.

“Lembro-me bem. Saí da plataforma, no aeroporto, umas dez vezes, para abraçar uma última vez a minha mãe e o meu irmão. Não sabia quando ia voltar a vê-los.”

Ainda hoje, Solmaz não sabe quando pode regressar ao aeroporto de Teerão, para voltar a abraçar a mãe: “Todos os que estão ativos contra a República Islâmica, fora do país, não podem voltar. Íamos ser presos.”

A jovem iraniana não teve “coragem” de avisar o pai sobre a despedida. “Ele não queria que isto acontecesse. Porque o meu pai ama-me muito”, diz emocionada.

Solmaz: “Lisboa deu-me o que a minha terra nunca me deu: liberdade.” Foto: Inês Leote

Uma “água de força” e uma cidade livre chamada Lisboa

Na mala, Solmaz guardou uma garrafa de água que a mãe lhe comprou no aeroporto e onde escreveu, a caneta, “Be Strong” (Sê Forte). Solmaz foi e continua a ser. Tenta sempre ser. Mas admite ser “difícil”.

Solmaz só queria “fugir” da prisão que diz ser o país onde nasceu. Portugal foi o primeiro país europeu que lhe concedeu autorização de residência. “Não sabia nada sobre Portugal, nem tinha expectativas. Vim só. Lembro-me de ficar surpreendida pelos portugueses serem tão amigáveis. Ajudam em tudo, tinha uma imagem diferente”, diz.

Hoje, Solmaz faz de Lisboa lar. “Quando regresso de uma viagem, mal vejo as luzes da cidade, a Ponte 25 de Abril iluminada, fico com aquela sensação de ‘cheguei, finalmente’.”

Para isso, ajudam os amigos que Solmaz aqui conheceu – são portugueses, moldavos e iranianos. “São a minha família. Passo o Natal com a minha melhor amiga, que é moldava, e tudo”, comenta. Conheceu-os a estudar português na Universidade Nova de Lisboa e nos protestos que a comunidade iraniana organiza em Lisboa.

Por cá, vai ficar, se o regime político iraniano não mudar, com o sonho de trabalhar em Direitos Humanos e voltar a estudar Direito.

Embora mais fácil, em Lisboa, onde encontrou paz. “Lisboa deu-me o que a minha terra nunca me deu: liberdade.” Está a estudar português, embora sonhe continuar os estudos em Direito e trabalhar em Direitos Humanos.

Lisboa e a sua calma, curiosamente alimenta-lhe uma “revolta interior”. As lágrimas caem, quando fala de Teerão. “É a minha casa. Tenho muitas saudades. Porque é que as coisas têm de ser assim no Irão? Há 43 anos que vivemos numa prisão. Numa cidade viva, como é Teerão, não é normal uma mulher sair sozinha à noite. O Irão é uma prisão a céu aberto, para nós, mulheres. Quando tens sete anos, és imediatamente obrigada a usar o véu na escola. Com sete anos, já sabes e sentes que és uma prisioneira”, diz Solmaz.

O Irão está no top 3 da ONU dos países que mais desrespeitam os Direitos Humanos, a par da Síria e da Coreia do Norte. As mais pequenas coisas são um sonho distante para as iranianas. Por exemplo, viajar por vontade própria ou andar na rua com um homem.

“Em Teerão, se andar com um homem na rua, perguntam-me quem é. Temos de mentir e dizer que é primo”, conta Solmaz. “Houve alturas em que obrigavam até as pessoas a casar.”

O cenário de medo está presente em qualquer momento do dia-a-dia de uma iraniana, sobretudo quando uma menina se torna uma mulher: “Não podia sair à rua com uma roupa mais curta, nem com maquilhagem, nem com as unhas pintadas…”

“Sempre tive medo. De acontecer o que aconteceu à Mahsa Amini – e a tantas outras cujo nome não sabemos.” Solmaz evoca a jovem curda de 22 anos, que morreu em finais de setembro, depois de ter sido detida pela polícia da moralidade. Em causa, estava o alegado uso incorreto do hijab, o véu islâmico.

Se se não usarem o hijab corretamente, isso entra no registo criminal de uma mulher. “E precisamos de o ter limpo para estudar, trabalhar, ter uma vida”, conta Solmaz.

Protestos em Portugal usam a bandeira do Irão modificada. Foto: Inês Leote

Fã de fado, dança Azeri nos protestos

Na Rua Augusta, um artista de rua toca alto Michael Jackson. Em Portugal, Solmaz tornou-se fã de Amália Rodrigues e de fado em geral. Aqui, a jovem diz ter reconstruído o “sentimento de casa”. “Mesmo quando está frio, como nesta noite de dezembro, sente-se o calor em Lisboa. Vem das pessoas”, comenta enquanto olha para a decoração de Natal que ilumina a Baixa.  

É uma época mágica, o Natal em Lisboa, que alimenta o sonho de Solmaz. “A revolução que está a acontecer dá-me esperança de um dia cumprir o meu sonho: viver com a minha família.”

Aqui, ela participa nos protestos dançando o Azeri, uma dança típica das suas origens turcas. “Queremos mostrar a nossa cultura.”

A dança que Solmaz faz em todas as manifestações em Lisboa.

As mulheres iranianas foram consideradas as heroínas do Ano 2022, para a revista norte-americana Time, sucedendo aos cientistas que descobriram as vacinas contra a covid-19, heróis de 2021. São elas as protagonistas deste movimento espontâneo, feminista, sem líderes e pelos Direitos Humanos, que varre o Irão desde finais de setembro, depois da morte de Mahasa Amini.

“Quando vejo jovens de 7, 10 ou 15 anos a liderar protestos no Irão, frente à polícia, sem medo de morrer, só penso que tenho de sair de casa. Não sou tão corajosa quanto elas”, confessa Solmaz.

Algumas já pagaram com a vida essa coragem. A Time contabiliza a morte de mais de 400 pessoas nos protestos, fruto da repressão policial. Pelo menos 60 eram crianças. A idade média das detenções é incrivelmente baixa – 15 anos.

É o caso de Hasti Narouei, de apenas 7 anos, cuja história é contada pela BBC. Morreu nos protestos, quando tinha começado a ir à escola há semana.

Ao contrário de Portugal, o Irão é um dos países mais jovens do mundo. 40% da população tem uma idade inferior a 24 anos. É uma geração educada, com acesso à internet e que conhece a castração a que está sujeita.

Para a Time, estas jovens não se identificam com a cultura islâmica, mas sentem que pertencem mais a uma “comunidade transnacional da Geração-Z”: algumas são vegans, a maioria não quer casar, nem ter filhos.

Solmaz:. “Ainda acho extraordinário como posso andar por aqui sozinha, sem medo.” Foto: Inês Leote

Solmaz ou Tina, as iranianas que escolheram Lisboa como lugar de refúgio, nunca mais voltaram a vestir o hijab. Embora digam que esta revolução é para todas, mesmo para aquelas que querem usar o véu islâmico. A questão não é essa. “É em nome da liberdade”, diz Solmaz.

Por isso, Solmaz aproveita esta noite de sábado para passear pela cidade e ver as decorações de Natal. “Ainda acho extraordinário como posso andar por aqui sozinha, sem medo”, comenta enquanto se vai afastando da Praça D. Pedro IV.  É o poder de Lisboa. Dar asas a quem as procura.


João Damião

João Damião

É aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias.

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1 Comentário

  1. Não compreendo o top 3 da ONU quanto aos direitos humanos. Então o Irão desrespeita mais as mulheres que países como o Afeganistão, a Arábia Saudita, o Paquistão e tantos tantos outros onde as mulheres não têm quaisquer direitos?! É por causa destas listas fabricadas ao sabor da politica e não dos direitos humanos que as mulheres continuam reféns. Basta de hipócrisia, por favor.

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