Casa do Brasil de Lisboa Preconceito Imigrante
Foto: Rita Ansone.

Quando decidi mudar de país, uma amiga escreveu: “Que Portugal traga o que você procura, mesmo que ainda não saiba o que seja. Ao se deparar com o fim da busca, saberá reconhecê-la”.

Lembrei disso porque o meu desembarque em solo lusitano completa quatro anos, coincidentemente, na mesma semana em que se comemora o 18 de Dezembro, Dia Internacional dos Migrantes. Foi assim que a nostalgia, comum no encerramento do ano, convidou-me à reflexão do que tem sido essa experiência tão sedutora quanto apavorante.

Hoje reconheço que a subestimei.

Tendo morado em diversas cidades do Brasil, de onde eu vim, achei que seria só mais uma mudança entre tantas outras. Um engano completo. Abrir mão da nossa pátria tem qualquer coisa que arranca do peito um pedaço inerente à formação da própria identidade. É o rompimento de códigos sociais que constituíram, até ali, a maneira como aprendemos a falar, pensar, agir, sentir e isso acontece de uma forma tão avassaladora que é difícil lidar com o vazio.

É entrar em contacto com o “eu” em seu estado mais primitivo, com aquilo que sobra quando não se tem mais nada, nem ninguém. É ver no espelho uma imagem despida de qualquer vaidade porque ela foi a primeira coisa a ser deixada de fora da mala, com o risco de pagar pelo excesso de bagagem.

Aqui chegamos com a resignação de quem quer subir uma escada, mas antes precisa deixar a vida te jogar vinte degraus para trás. Desafiar o ego é um exercício profundo que todos deveriam ser levados a fazer em algum momento, dentro ou fora do país de origem.

“Saia da sua zona de conforto”, pregam milhares de gurus na internet.

Mal sabem eles que, no caso de um imigrante, essa frase pode significar chorar em posição fetal sentindo uma dor tão forte que parece que dá para tocá-la. As ausências sufocam. O sono vai e nós ficamos. Mesmo assim, logo cedo empurramos o corpo cansado ladeira acima para mais um dia estafante de trabalho.

É por essas e outras que me revoltam os desrespeitos quotidianos, quase sempre implícitos, mas nem por isso menos cruéis.

Perdi a conta de quantas vezes mandaram que eu falasse em português, e não em “brasileiro”, ou desmontaram os sorrisos ao ouvirem o meu sotaque. Quantas piadas infames, maus-tratos gratuitos e tentativas de silenciamento ao descobrirem que o meu corpo também abrangia – olhem só – um cérebro. Não se trata de vitimização, mas de encararmos de frente uma chaga global que ganha espaço com o recrudescimento dos discursos de ódio e é perigosa porque mora nas entrelinhas, nas conversas despretensiosas, num olhar descuidado (intencionalmente ou não) sobre a realidade que nos cerca.

No dia de hoje, quero saudar todos aqueles que deixaram a cadeira nos almoços de família e empreenderam nessa jornada rumo ao desconhecido. Eu, que só sei ser por escrito, envio daqui um abraço sincero por saber que não é fácil construir de novo o ninho e aprender a se habitar em outra fundação de ser-estar.

Toda essa manobra de palavras é para dizer que voltar para o que tínhamos já nem é possível. Nós não somos os mesmos. A nossa terra também não.

Aceitar a transitoriedade de uma história em movimento é reconhecer em si uma força ainda maior do que a saudade.

Mais do que sobreviver, falo sobre viver.

Em meio aos medos, inseguranças e incertezas, que venham também sons, cheiros, sabores, cores e amores que ajudem a tecer memórias e a edificar, pouco a pouco, esta parte bonita do mundo em que escolhemos ficar.

Nascida na Amazónia brasileira, Maíra Streit tem uma vida comprida para os seus 36 anos. Ao transgredir as próprias fronteiras, encontrou no jornalismo um território para a liberdade. Cultiva a sede de desvendar o mundo através do olhar do outro e tem um especial interesse por tudo o que acontece à margem das narrativas. Mergulha sempre que pode na cobertura dos direitos humanos porque sabe que, às vezes, é preciso partir-se para continuar inteira.

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9 Comentários

  1. Incrível! São estes relatos que fazem a diferença na nossa sociedade!

  2. Parabéns Maíra pelo texto!!
    Eu como imigrante me conecto e reconheço nas suas palavras que retratam muito bem o que é deixar o país de origem e ter coragem para mudar tudo.

  3. Bela reportagem, PARABÉNS a Jornalista e ao Jornal por relatar uma realidade diária

  4. Portugal é um país de imigrantes desde há séculos. Há Portugueses nos “quatro cantos do mundo”. Porém, muitos q cá vivem não respeitam os vêm tentar a vida honestamente cá em Portugal. As
    novas gerações, na minha opinião, já pensam diferente…

  5. Um relato importante para quem pretende se mudar para outro país e também para quem vive fora. Lindo texto!

  6. Parabéns, Maíra! Seu texto retrata a trajetória de tantas pessoas migrantes. Como imigrante, revejo-me nas suas palavras. Obrigada pela partilha

  7. Boa tarde.

    Gostei tanto desse texto, uma narrativa emocionante. Achei muito breve, queria mais… Há tempos venho acompanhando o tratamento que nossos ” irmãos europeus” nos dão. Não tinha noção do preconceito que nós brazucas ou os “zucas” sofriamos nas terras de Camões…achava que nos tinham como irmãos, sério. Mas penso que não seja todos os portugas.

    Há tempos correspondia via cartas (kkk) com duas portuguesas, foi um peeiodo muito profícuo, pr’ambas as partes.

    Viajei com na sua narrativa, tipo quando eu embarcava com Júlio Verne – ao infinito e além – ou simplesmente” da terra à lua” mesmo.

    Curto muito um banda que, mesmo sendo lusitana, se chama ‘ The Gift” e canta ” Índios ” da minha preferida Legião Urbana. A letra, a propósito, fala muito sobre os pontos em comuns Brasil e Portugal…apreciem, por favor, a releitura é show.

    Bem…onde eu estava mesmo? Bom, legal mesmo levantar velas do Monte Pascoal pra Torre de Belém… Deus te abençoe.

    Ah…tamo junto!!

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