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Tivesse Maria Antonieta reinado sobre as Avenidas Novas e é bem possível que não desdenhasse os brioches da Pastelaria Versailles. Ou os sumptuosos ducheses, tão elaborados na arte da pastelaria como as toilettes com que a Rainha de França se apresentava na corte antes de o céu lhe cair literalmente sobre a cabeça.
A Patisserie Versailles, inaugurada a 25 de Novembro de 1922, na ainda jovem Avenida da República aspirava ao chic parisiense, que, nesse princípio dos anos 1920, ainda servia de bitola da elegância a meio mundo. Dois dias depois da abertura, o vespertino Diário de Lisboa destacava o acontecimento com uma notícia que levava o esclarecedor antetítulo: “Às elegantes”, a que se seguia o texto “Uma casa de chá nas Avenidas Novas”.
A novidade era grande. O requinte das melhores casas da Baixa e do Chiado “subia” a cidade e chegava às Avenidas Novas, rasgadas há pouco, onde uma burguesia emergente encontrava casas mais amplas e arejadas, construídas de acordo com os princípios higienistas das primeiras décadas do século XX.


Como dizia um dos sócios fundadores, José António Vinhais ao redator do Diário de Lisboa enviado ao “copo de água da inauguração”: “Há muito que se fazia sentir, neste bairro, a necessidade de um estabelecimento onde pudesse reunir-se a sociedade elegante, sem necessidade de ir à Baixa”.
Cem anos depois, numa Lisboa em tudo tão diferente, Paulo Gonçalves, gerente, com mais de 30 anos de Versailles, chama a atenção para os detalhes que restam dessa época em que um trintanário à porta selecionava quem tinha ou não direito de admissão.
“Os detalhes da decoração de interiores estão intactos, desde os móveis aos tetos. A classificação como imóvel de interesse público, desde 1996, exige que não façamos alterações e que mesmo as obras de manutenção estejam condicionadas por critérios apertados.”
Assim o reclamam os interiores rocaille, concebidos pelo arquiteto Norte Júnior (autor do projeto) inspirados, como o nome do estabelecimento sugere, no Palácio de Versailles, com painéis pintados de Benvindo Ceia, talha de Fausto Fernandes e vitrais de Ricardo Leone.

“Nas últimas grandes obras que fizemos – conta ainda Paulo Gonçalves – havia necessidade de fazer a manutenção da talha. Por imposição legal, tivemos mesmo de usar folha de ouro e foi uma equipa da Escola Superior de Belas-Artes que realizou o trabalho.”
Uma patisserie para as Avenidas Novas
Rasgada a Avenida da Liberdade, Lisboa sonhava com uma modernização inspirada no modelo dos grandes boulevards parisienses. Em 1888, o engenheiro Frederico Ressano Garcia concluía um extenso projeto de urbanização de edificação do planalto a norte do centro histórico, que partia da Avenida da Liberdade e se estendia até ao Campo Grande, então um bucólico lugar onde os lisboetas corriam a refrescar-se em dias de canícula.
Este plano urbanístico previa a criação das Avenidas posteriormente designadas Fontes Pereira de Melo e da República, ligadas entre si pela praça Duque de Saldanha. Destas novas avenidas nasceria todo um conjunto de novas ruas, com uma métrica ortogonal.
Aprovado somente em 1904, o plano de Ressano Garcia abriu à urbanização estes novos espaços e consagrou a rutura com o modelo tradicional de crescimento junto à faixa ribeirinha, tal como acontecia, noutra direção e de forma arquitetonicamente mais modesta, com a abertura da Avenida Dona Amélia, renomeada Almirante Reis após a implantação da República.

Na segunda década do século XX, a Avenida que tomou o nome do regime instaurado a 5 de Outubro de 1910 era já um mostruário de arquitetura Arte Nova. No quarteirão onde abriria a Versailles, brilha o talento de arquitetos como Álvaro Machado (autor do nº 13, onde hoje está o Colégio Académico) ou Pardal Monteiro (no número 19), mas é sobretudo Joaquim Norte Júnior (1878-1962) que lhe imprime a sua marca.
Um pouco por toda a cidade, o nome do arquiteto está ligado aos Cafés Chave d’Ouro, Nicola, Brasileira do Rossio e Brasileira do Chiado, bem como a edifícios importantes como a Kodak, Ramiro Leão, Voz do Operário, Associação dos Empregados de Comércio e Indústria e Teatro Variedades.
Vencedor de um Prémio Valmor, em 1905, com a sua casa Malhoa (atual casa Museu Anástacio Gonçalves), no gaveto da Avenida 5 de Outubro com a Fontes Pereira de Melo, ao abrir portas, a Versailles revelaria aos frequentadores um dos trabalhos mais ambiciosos de Norte Júnior.



Nessa Lisboa em que homens como o poeta Mário de Sá-Carneiro enalteciam o valor da mesa de café (como no poema “Cinco Horas”, em que ele escreve “Minha mesa no café/Quero-lhe tanto…), às mulheres (da burguesia, entenda-se) estavam reservadas as casas de chá e patisseries, que funcionavam um pouco como prolongamento dos salões em que as senhoras jogavam canasta ou discutiam enxovais.
Como anunciava o Diário de Lisboa, a patisserie Versailles era também charcuterie e pastelaria. Para assegurar a qualidade dos produtos servidos, os dois proprietários, José António Vinhais e Salvador José Antunes não hesitaram em contratar Mariano Rey, pasteleiro espanhol que fizera escola nas cozinhas do Palácio Real de Madrid.
O repórter do jornal lisboeta acrescentava ainda que o novo espaço assegurava serviço de catering para festas e reuniões sociais de todo o tipo, bastando para o efeito fazer o pedido para o telefone número 3-219 Lisboa Norte.
E concluía: “A Patisserie Versailles, vindo, como vem preencher uma importante lacuna do nosso meio comercial, tem um futuro absolutamente assegurado. Para mais, estando o elegante e populoso bairro em que se acha instalada, a desenvolver-se de forma extraordinária, a ponto de constituir por assim dizer, dentro de meses, uma nova cidade.”

Obrigada a mudar o nome para Pastelaria Versailles por decreto de 1926 que impedia o uso de designações em línguas estrangeiras no comércio de Lisboa, a marca expandiu-se. Quase em frente, a mesma firma abriria a Pastelaria Colombo e a Ideal das Avenidas, já na Praça do Campo Pequeno, ambas já encerradas.
Um balanço feliz
No princípio da década de 1980, quando os atuais proprietários entraram na sociedade, depararam com uma situação de evidente decadência.
As mudanças de comportamentos ditadas pelo 25 de Abril de 1974 tinham feito da “Versailles” um símbolo de privilégio associado às elites da ditadura e, como tal, um lugar a evitar para não se parecer…burguês.


Como conta Paulo Gonçalves, “houve que fazer uma grande campanha de obras, remodelar um pouco o espaço, com a construção da mezzanine, por exemplo, e introduzir novas práticas como o café expresso. Por estranho que pareça, até aí o café que aqui se servia era de balão ou de cafeteira, ao contrário do que acontecia na maior parte das pastelarias ou cafés da cidade.”
Quatro décadas depois, o balanço, a fazer-se, “é feliz”, admite o gerente. “Claro que há fases mais difíceis, como foi o do confinamento ditado pela covid-19, cujas consequências ainda estamos a pagar uma vez que agora há que ressarcir o Estado pelos apoios concedidos.” Paulo Gonçalves não esconde a importância que atribui à estabilidade do pessoal já “que quem serve às mesas é o primeiro rosto da marca.”
O sócio gestor da Versailles, Mário Pereira Goncalves, era um homem de trabalho, que nascera em Arganil e veio com 13 anos para Lisboa, tendo sido trabalhador num lugar de fruta durante dois anos – aos 23 anos tornou-se empresário, e assim se manteve até ao final de 2022, quando faleceu. Antes foi homenageado pela Câmara Municipal de Lisboa.
Hoje, o grupo Versailles abrange ainda a pastelaria do mesmo nome em Belém e os espaços de restauração presentes nos Hospitais de São José, Curry Cabral e Maternidade Alfredo da Costa, num total de 150 funcionários. Isto sem esquecer a fábrica porque nenhuma das delícias doces ou salgadas que, do extenso balcão, nos aliciam a gula tem outra origem.




Os clássicos são os croquetes e rissóis de camarão, os ducheses e, no Natal, o bolo-rei, os fritos típicos da quadra e a lampreia de ovos. “Receio que este ano tudo fique mais caro porque o preço dos ingredientes subiu exponencialmente”, diz-nos Paulo Gonçalves, confiante, no entanto, de que os muitos fiéis da casa compreendam as circunstâncias.
A fidelidade dos clientes é, aliás, um dos trunfos da “Versailles”, cujas paredes conhecem mais segredos do que é possível revelar. Histórias que fazem parte da vida privada dos lisboetas, como a do próprio Paulo Gonçalves que nos conta ter aqui conhecido a mulher, quando esta estudava no vizinho Colégio Académico. Mas como ele, tantos outros.
“Ao longo de décadas, fizeram-se aqui muitos pedidos de casamento e é frequente que os noivos contratem o nosso serviço de catering para a cerimónia. Ou celebraram-se negócios.” Para outros, um bolo, um café e uma palavra amiga do empregado que se conhece há décadas podem servir de consolo se as notícias forem menos felizes.
Num século de portas abertas à cidade, a Versailles foi sendo palco de todo o tipo de enredos – da tragédia pessoal ou coletiva à comédia de costumes. Mas a qualidade do que chega à mesa mantém-se inalterável.

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Maria João Martins
Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.