Uma senhora desenrola um imenso esquema em papel e começa a enumeração: “Qatar, dois e oito; Equador; dez e dezassete; Senegal, dois, três e doze”, e daí por diante. A lista é grande. A fila de espera diante da agência do BPI do Rossio também. No banco como na banca do “Príncipe dos Cromos”, um Mundial é tempo de fazer negócio.
Desde setembro, quando os coloridos cromos do Mundial do Qatar despontaram nos quiosques e tabacarias, tem sido assim no estreito enclave entre os Restauradores e o Rossio, onde reis, rainhas e príncipes dos cromos disputam a atenção do súbditos em busca das últimas figurinhas que faltam para completar a caderneta.
Um negócio que não para, que nunca está em baixa, uma vez que há sempre uma caderneta de qualquer temática a ser preenchida, mas que tem os seus momentos altos durante as grandes competições de futebol, quando os miúdos retomam em força as trocas de cromos, as disputas de “bafo” e os apelos a pais, tios e avós pelo ansiado cromo que lhes falta.
Uma febre que começou antes de a bola rolar no Qatar e continuará mesmo depois de a seleção vitoriosa erguer o troféu a 21 de dezembro pois, como atestam os cromos do Mundial da Rússia, em 2018, ou do Euro de 2020 ainda a trocarem de mãos, uma caderneta não desaparece com o apito final.
E se Portugal for campeão, então…
O Rei dos Cromos e o Natal de um ano inteiro
“Se Portugal for campeão, é Natal o ano inteiro”, torce Albino Rodrigues, o “Rei dos Cromos”, encastelado no quiosque diante da agência dos CTT dos Restauradores. A menção ao possível título é um dos raros momentos em que o sorriso lhe surge no rosto, já que uma recente constipação fez uma mossa no humor do comerciante.
“Há quatro dias que não venho trabalhar e ainda tenho que parar o trabalho para uma entrevista?”, contesta o Rei dos Cromos, observado de perto por um atento ajudante, a guarda-real do monarca das saquetas, que antes de permitir o primeiro contacto com o senhor Albino, exigiu a apresentação da identificação profissional.

O vendedor teima na carpidura, assim como as estrelas da bola, impaciente com a fama.
Apontando para o quiosque vizinho: “Vá à Rainha dos Cromos, ela gosta de falar, precisa de publicidade. Eu não, já sou famoso”, insiste, com o ajudante colado ao seu lado, uma espécie de “cromo do Rei dos Cromos”, a concordar com a cabeça.
Num quarto de hora, o Rei dos Cromos fez jus ao reinado e despachou meia-dúzia de listas de cromos em falta. O ritual repete-se: de tempos a tempos, alguém se aproxima com uma série de nomes e números anotados num papel ou no telemóvel e inicia a contagem das figurinhas para tentar, finalmente, preencher a caderneta.
“Gana, dois, sete e quinze; Brasil, cinco, oito e vinte; Coreia, um, cinco e oito…”, indica o rapaz metido no impermeável, enquanto Albino vasculha as pilhas de cromos nas mãos.
“O Brasil vinte está em falta”, anuncia e o cliente encolhe-se ainda mais no impermeável, ciente de que se o Rei dos Cromos não o tem, será difícil encontrar.
O cromo vinte do Brasil corresponde ao jogador Vinícius Júnior, avançado do Real Madrid, mas no universo do negócio dos cromos, raramente se ouve o nome de um futebolista. A exceção são os cromos raros dos craques, dos Ronaldo, Neymar, Messi e Mbappé.
O resto é apenas uma figura colorida a preencher um retângulo vazio.
O senhor Albino recupera o fôlego num raro momento de paz. “Esta constipação foi tramada”, queixa-se, “estava em casa a tentar descansar e o telemóvel não parava, atendia e do outro lado perguntavam: Sr. Albino, o que é feito de si?”, conta, enquanto o ajudante, inexorável e solidário, sugere que a entrevista já está a demorar.
A marcação dos clientes é o ónus da coroa invisível que o comerciante de 62 anos leva sobre a cabeça. Já lá vão mais de três décadas de reinado, anos a fio de cromos a deslizarem entre os dedos, como as cartas na mão de um experiente crupiê, ciente de que independentemente de quem vença a competição, a casa vai sempre ganhar.
Na cotação das cadernetas, os valores dos cromos não obedecem ao desempenho do seu titular durante a competição.
Messi perdeu um penalti? Neymar lesionou-se? A França de Mbappé perdeu? Ronaldo já não é o mesmo? Não importa, o cromo de cada um deles pode valer 5 euros, contra 45 cêntimos dos demais na caderneta.
“Há dias em que se juntam cinquenta pessoas aí à frente”, diz Albino.
“Portugueses, brasileiros, espanhóis, franceses e alemães. Menos os ingleses, porque os cromos lá são melhores”, atesta Albino, resguardado pelo estatuto de fornecedor oficial da Panini, a histórica empresa italiana responsável pela impressão das figurinhas.
“Isto até este Mundial”, segue Albino, permitindo-se uma indiscreta fuga de informação privilegiada. “A partir do próximo Mundial, quem vai imprimir os cromos não é a Panini, mas a Topps, da Inglaterra”, explica.
O furo jornalístico sendo o prémio de consolação a quem resistiu até agora aos efeitos da constipação no humor dele.

Quem não baixa a guarda é o cromo fiel do Rei dos Cromos, que assim como a chuva, não dá tréguas. Continua a falar, sem interrupção, sobre assuntos diversos, que se entrecruzam com as perguntas e respostas, sendo o último dos temas a qualidade do equipamento da fotógrafa que regista as imagens do Rei dos Cromos. “Essa câmara não é boa!” é última sentença ouvida.
Uma Rainha dos Cromos sem herdeiros
A poucos metros está Marina Clara Antunes, a Rainha dos Cromos, sentada à frente do seu quiosque, a cadeira de praia o seu trono, protegida da chuva por um chapéu do Sporting.
Diante dela, uma cliente segue a cantilena: “Estados Unidos, nove; Suíça, um; Polónia quinze”, enquanto a monarca lisboeta vasculha os bolsos.

Não há um centímetro livre no quiosque. Marina guarda os cromos no bolso do casaco, espécie de cofre. Um a um, os cromos solicitados são repassados para a cliente, que, num esgar de alívio, anuncia que a caderneta do filho está finalmente completa e a missão da mãe cumprida.
Pelo menos, até ao próximo Mundial.
A Rainha dos Cromos, solidária com o triunfo materno, também sorri. Aos 61 anos, quarenta deles no mesmo quiosque, Marina Antunes já perdeu a conta de quantas vezes pais e avós respiraram de alívio após preencherem as cadernetas e as expetativas de filhos e netos, o último cromo celebrado como o golo do título.
Marina aprendeu o ofício com a mãe, também Marina, Marina Glória, a “Espanhola”, como era conhecida a portuguesa filha de espanhóis, desde muito antes de o primeiro quiosque surgir no passeio dos Restauradores, nos anos 1950.
“A minha mãe já andava a vender na Baixa, o tabuleiro pendurado no ombro, os pés descalços”, lembra a Rainha dos Cromos.
O quiosque foi erguido à revelia das autoridades, nos anos 1980. Marina lembra a mãe, a discutir com os fiscais, a dizer que nem ela nem o vizinho, o senhor Albino, levantariam nada dali. Tinham direito.
Pagariam pelo chão onde estavam. E assim foi feito, a “Espanhola” vencera a contenda, uma lutadora até ao último suspiro de vida.
Marina herdou o reinado. Uma dinastia sem sucessores, pois Marina não teve filhos. “São muitos anos a bater”, testemunha a rainha sem herdeiros. “Tia”, sim, dos miúdos levados pelos pais e avós para trocarem os cromos, muitos desses pais, avós de hoje, miúdos de outrora, gerações a reverenciarem a monarca dos Restauradores.
O rapaz metido no impermeável veio tentar a sorte no reinado vizinho.
Dona Marina vasculha os bolsos, como o mágico numa cartola, e retira o sonhado cromo Brasil, número vinte, o sorriso de Vinícius Júnior na fotografia a acompanhar o do novo dono da figurinha. A Rainha dos Cromos também tem os seus truques.

Dos bolsos mágicos saiu também o raro cromo Argentina, número vinte, também conhecido como Lionel Messi. Era o cromo que me faltava, pois o repórter também é pai e quando o filho de oito anos soube da visita aos reinados dos cromos, uma lista imediatamente materializou-se nas suas mãos.
Apesar de raro, a Rainha dos Cromos foi benevolente e o craque argentino negociado com o repórter brasileiro por meros dois euros.
Um príncipe a aspirar ao reinado
Há apenas duas décadas no negócio dos cromos, o casal António e Maria Fernanda Matias são conhecidos como o príncipe e a princesa dos cromos. Mas não se ouse chegar lá a chamá-lo pelo título. “O rei aqui sou eu!”, anuncia António, exibindo uma espécie de certificado que lhe atesta a monarquia.
Uma folha de papel sem chancelas oficiais e nem mesmo um carimbo da FIFA, assinado pelo próprio António, pois é dos reis o ofício de dar fé às coisas.
Por via das dúvidas, o certificado real segue à vista dos clientes, sobre o tabuleiro de cartolina, ao lado das pequenas pilhas de cromos, enfileiradas umas ao lado das outras.

António Matias tem 71 anos, menos nove do que a mulher, a idade revelada quase aos sussurros para evitar querelas diplomáticas com a princesa, ou rainha, conforme se queira. A idade não é empecilho para o casal passar o dia ao relento, em pé no passeio em frente à agência bancária do BPI, das nove da manhã às cinco da tarde.
A senhora do início do texto com a imensa lista leva uma boa meia hora de trabalho do senhor António. São pelo menos quatro páginas com os nomes das seleções e os respetivos números.
“O que uma avó não faz pelo neto”, justifica a mulher, esboçando um sorriso, enquanto os cromos lhe chegam às mãos.
A felicidade do neto custou-lhe aproximadamente quarenta euros, que o senhor António indica que seja pago a Maria Fernanda, pois naquele principado o tesouro está sob os cuidados da princesa. Em seguida, o Príncipe dos Cromos volta-se para o próximo cliente na pequena fila que se forma diante do tabuleiro.
Antes de ser alçado à família real dos cromos de Lisboa, António trabalhava no setor automóvel, pintando e polindo metais de carros e camiões. Reformou-se há duas décadas e a renda proveniente dos anos dedicado a dar brilho ao aço hoje é completada pelo colorido da tinta sobre o papel.
“Prefiro os cromos”, diz, enquanto dá cabo de outra pequena lista. “Trabalho ao ar livre e conheço mais gente”, resume António, abrindo um sorriso para receber um rosto conhecido. O novo cliente aproxima-se e uma massa de papel dobrado desfolha-se como um estranho origami numa nova e imensa lista.
“É um bom homem”, explica Maria, referindo-se ao conhecido cliente. “Completa as cadernetas para dar as crianças”, conta.
O homem apenas sorri, sem confirmar as referências. Não há tempo a perder. Os cromos seguem agilmente a trocar de mãos, por um bom tempo, guardados por ele numa pequena valise.

O “bom homem” termina a busca. Antes de partir, exibe o interior da valise, repleto de cromos. Pergunto quantas figurinhas estima lá haver. “Duas ou três mil”, é a única coisa que se permite revelar, o que revela também que talvez não esteja apenas à procura de completar cadernetas para miúdos, mas também de um bom negócio.
Um bom negócio parece resumir a febre dos cromos durante o Mundial, uma atividade paralela aos temas do futebol. Em nenhum dos três principais sítios de venda em Lisboa se ouviu um único comentário referente à bola, o elogio a um golo marcado, a polémica de um lance, a aposta sobre quem será o campeão.
Um pouco como acontece nas principais competições internacionais, no mundo dos reis, rainhas e príncipes dos cromos, o futebol parece ser o de menos, um relvado invadido pelo negócio, a alegria e o sorriso das crianças apenas uma boa desculpa para se garantir a renda enquanto a bola está a rolar.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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