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O humorista brasileiro Millôr Fernandes costumava dizer que o Brasil tinha “um enorme passado pela frente”, um aforismo que mais do que retratar o aguçado humor do também dramaturgo e desenhador contradizia a propaganda da então ditadura militar, ansiosa em vender o gigante sul-americano como o “País do Futuro”.
O “País do Futuro”, uma expressão roubada pelos militares ao título do livro do escritor judeu Stephan Zweig, um austríaco que trocou Salzburgo pelo Rio de Janeiro no início do século XX e, mais do que uma constatação do potencial brasileiro, cristalizava o desejo quase infantil do autor de que o Brasil se afastasse da violência do Velho Mundo.
Zweig não chegou a ver realizada a sua profecia – suicidou-se em 1942 em Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde estão o antigo palácio imperial de Dom Pedro II e o mausoléu do imperador. Portanto, o local de morte do escritor que sonhava com o futuro é, ironicamente, um “museu” dedicado ao passado colonial brasileiro.
Uma ironia que permeia a piada do humorista Millôr e a violência de colonizadores, militares e ditadores, amálgama da exposição Um enorme passado pela frente, que reúne o trabalho de onze artistas brasileiros, dispostos nos 300 metros quadrados do primeiro piso da plataforma Revolver, em Lisboa, até ao dia 5 de novembro.

A exposição Um enorme passado pela frente é uma sequência de trabalhos em vídeo, fotografia, papel, tecido e metal que tem como intenção levar brasileiros e portugueses a refletirem sobre como os laços do colonialismo que uniram os dois povos no passado seguem ainda atados dois séculos depois da independência do Brasil e se refletem no atual cenário político brasileiro.
“Foi justamente o bicentenário da Independência do Brasil que deu o start na conceção da exposição”, diz a curadora Cristiana Tejo, que apesar de carregar o apelido do mais lisboeta dos rios é brasileira, desde 2015 a viver em Lisboa.
A efeméride deu o start, mas um outro apelo bem factual colaborou com o processo.
“Como calhou de o bicentenário coincidir com a eleição mais importante da história da democracia brasileira, era inevitável não fazer uma reflexão sobre como a atual ascensão do bolsonarismo é um sinal claro desse enorme passado que o Brasil tem pela frente”, pontua a curadora.
Fé, foguete e a arte da “putinha terrorista”
Logo na entrada, uma projeção em vídeo traz o canto de mulheres negras durante a celebração do Divino Espírito Santo, em Alcântara, no Maranhão, uma festa de influência portuguesa – muito celebrada nos Açores – e que no Brasil caiu no caldeirão do sincretismo e incorporou os tambores das religiões de matrizes africanas.

A instalação Nada É, do artista Yuri Firmeza, alterna as imagens dos cânticos com a de um foguetão a rasgar o céu. Além de receber a Festa do Divino, Alcântara é também sede da maior base brasileira de lançamento aeroespacial. Ponto de convergência de um Brasil que ao mesmo tempo reverencia o passado e aspira ao futuro.
“A religião foi um dos pilares da colonização portuguesa, a usar a força para salvar a alma dos indígenas no caminho para o céu”, relembra Cristiana. “É curioso perceber através dessa obra que tanto no passado como no futuro continuamos a buscar um sentido para a vida olhando para o alto.”
Yuri Firmeza faz parte do team de artistas brasileiros da exposição que começou a produzir durante os anos do Partido dos Trabalhadores no poder, quando aumentou em 142% o orçamento destinado à cultura. Recorde-se que o bolsonarismo extinguiu o Ministério da Cultura.
Uma geração que não se dobrou às dificuldades do campo das artes no pós 2016, como a artista carioca Lyz Parayzo, uma antiga manicure que trocou a delicadeza dos vernizes de unha pela nitroglicerina do ativismo e virou pelo avesso a arte contemporânea brasileira.
Nascida em 1994, Lyz Parayzo irrompeu durante o impeachment da presidente Dilma Roussef, o marco do início do bolsonarismo. E fê-lo com estilo, através da série Putinha Terrorista: espalhou flyers pelo Rio de Janeiro onde havia imagens do próprio corpo parcialmente despido e em poses sensuais (é trans e não binária).


A exposição em Lisboa conta com a série mais recente da artista, Bixinhas, esculturas realizadas em alumínio polido. Na plataforma Revolver está a Bixinha Quadrada Circular, que remonta a lâmina das serras que devastam a floresta amazónica.
“Um desmatamento que não é recente, mas tem 522 anos”, ressalta Cristiana Tejo.
Um desmatamento que está na origem do nome Brasil
A curadora explica que é comum os brasileiros e portugueses esquecerem que tanto o nome do país como o de seus habitantes estão relacionados com o desmatamento. “O Brasil é uma referência ao pau-brasil, uma árvore valorizada pelos portugueses pois daí vinha o pigmento para tingir os tecidos em vermelho”, relembra.
Uma característica já conhecida dos povos originários brasileiros, que batizaram árvore de brasil, em tupi, “vermelho como brasa”. Já os brasileiros, como o sufixo “eiro” deixa bem claro, foram os primeiros imigrantes a viverem na antiga colónia, profissionais responsáveis pelo desbaste do pau-brasil para o envio ao reino.
“Noutro dia, recebi na exposição uma turma de estudantes de arte de uma universidade e nenhum deles sabia a origem do nome do Brasil, nunca tinham ouvido falar em pau-brasil. O que talvez reflita a falta de preocupação dos portugueses em refletirem o seu passado de colonizador e suas as implicações históricas”, diz Cristiana.
O Brasil de hoje como há 522 anos
É de Marília Dardot uma das obras que aborda a história recente do Brasil. Através de três impressões em retângulos de algodão, A República sobrepõe o texto dos votos anunciados pelos deputados brasileiros durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff.
Destacam-se nos retângulos que reconfiguram a bandeira brasileira as palavras “família”, “Deus” e “os meus amigos”, as mais citadas entre os discursos, onde o bordão cunhado por Mussolini na matriz do fascismo em Itália sofre uma ligeira variação na versão brasileira, substituindo a “família” pelos “amigos”.

“Nada mais natural no país onde um provérbio anuncia que, para os amigos, tudo, e para os inimigos, o peso da lei”, explica Cristiana Tejo, enquanto caminha em direção ao pequeno ecrã no lado oposto. Aqui, uma série de vídeos da propaganda oficial da ditadura brasileira passa em loop constante, no trabalho O Brasil, de Jaime Lauriano.
Através dos auscultadores é possível escutar o passado a ecoar no presente.
Num dos vídeos, o ator Tarcísio Meira é Dom Pedro I, apeado no cavalo e de espada em punho, a bradar o indefetível “Independência ou Morte!”, em 1822 assim como os deputados em 2016, em nome da “família” e de “Deus”.

Para a curadora, a exposição mostra que o Brasil precisa olhar para esse passado para finalmente começar a “olhar para frente”, um passado urdido também na relação entre brasileiros e portugueses, durante o período colonial.
“A ideia de que somos um povo cordial, pacífico e uma democracia racial é fruto deste tempo”, reforça Cristiana.
Um discurso que igualmente se reflete no pensamento português em se achar o melhor dos colonizadores, impondo uma “colonização humana” por onde passou. “O que não faz sentido algum, pois a colonização é um processo de desumanização e violento por natureza”, defende a curadora.
Como refletir sobre a relação umbilical Portugal-Brasil

Brasileiros e portugueses em Lisboa interessados em refletir essa ligação umbilical entre os povos podem visitar Um enorme passado pela frente até o dia 5, na galeria gerida pelo galerista lisboeta Vitor Pinto da Fonseca, proprietário de um prédio vizinho ao elevador da Bica e que (ainda) resiste à especulação imobiliária em nome da arte.
Uma oportunidade de refletir sobre a violência que rondou o nascimento do Brasil como uma nação, negado tanto por brasileiros como portugueses – nomeadamente contra os povos originários e as florestas brasileiras. E, de certa forma sobre a realidade atual do país, cultuada e incentivada pelo bolsonarismo, contra o que é diferente, esses mesmos povos originários e as florestas brasileiras.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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