Rampa do Vale de Santo Antonio
Rampa Vale Santo António Foto: Vítor Torres/Relâmpago

Eu não ia deixar passar uma nova Subida da Rampa do Vale de Santo António sem a minha presença, pares de palmas e gritos de encorajamento. Vi as fotos do meu amigo Ricardo Pinela na edição do ano passado e achei a festa tão lisboeta, tão popular e tão bonita, que meti o despertador a um domingo para estar lá aos berros na edição deste ano. 

Na verdade, é o tipo de vida pública com perfil próprio e carácter temático que bate bem com Lisboa, um conceptual que nasce da graçola, mas que dá a provar um sabor autêntico da cidade, que tem feito muita falta. 

Antes de mais, o que é a Subida da Rampa do Vale de Santo António?

É uma competição de ciclismo em que corajosos atletas se atiram sobre duas rodas a uma rampa tão íngreme, que os seus 550 metros chegam a ter zonas de 15% de inclinação. É este perfil de colina em escarpa que exige tanto das pernas de quem se atreve a enfrentar a rampa e é por isso mesmo que o apoio popular tem o efeito de tónica motivacional, assim como de distração sorridente face ao esforço.

É uma prova  desportiva, mas também pode ser uma celebração local. 

Foi o meu amigo Ricardo que me mostrou o contexto histórico da Rampa do Vale de Santo António. Também me explicou que era a Associação Desportiva e Recreativa “O Relâmpago” e como eles estavam a fazer a Rampa do Vale de Santo António acontecer em conjunto com o Mirantense Futebol Clube.

Quando vi as fotos das edições dos anos quarenta, senti que o espírito de rua era real, mesmo quando era sobretudo um aproveitamento genial da topografia para a prática do ciclismo. 

Assim que vi os cartazes para edição deste ano espalhados junto a Santa Apolónia, pus no Instagram a convidar a vizinhança, mas também nos meus próprios lembretes. Assim que lá cheguei, depois de uma Rua dos Sapadores que ainda acordava às dez da manhã, deparei-me com um entusiasmo e uma comoção que apanhava os carros de surpresa, onde dezenas de pessoas já se juntavam de cada lado da rua. 

Começo a tentar reconhecer amigos e conhecidos e em vez de dar de caras com eles, só vejo o Dinis Machado. Pode ter sido só na minha imaginação, claro, tal como imagino o Fernando Pessoa a subir a Rua das Trinas. Só que ali fazia-me todo o sentido ver o Dinis, num contexto perfeito para fumar cigarrilhas e vestir gabardine, como ele tanto gostava.

Certos ângulos da cidade, certos espíritos específicos, parecem revelar também os seus antigos moradores, aqueles que levamos sempre connosco. 

Depois lá encontrei os amigos do mundo dos vivos, todos eles interessados em saber se estava em missão de escrita, que rapidamente se tornou isso mesmo quando comecei a apontar detalhes. Um deles, essencial para pintar o quadro cénico deste texto, foi o facto de que as varandas à volta da rampa não ficaram de fora da celebração, ajudando a caprichar no cenário geral.

O “Prémio da Varanda Mais Bonita e Enfeitada”, com um nome quase tão kitsch como encantador, também foi resgatado das edições dos anos quarenta. 

Foi neste enclave entre café de bairro e competição popular que nos amontoámos de cada lado, fazendo uma festa a cada atleta que subia, criando um ambiente para miúdos e graúdos. Era celebrado com uma naturalidade que sugeria um intervalo muito mais curto entre as edições originais e este ressurgimento em 2021, cerca de setenta anos depois. 

Houve outro fenômeno a que assisti enquanto parte desta multidão e que me divertiu pelo quanto era empático. De todas as vezes que alguém ficava sem força nas pernas para continuar, era empurrado durante uns bons metros por membros da assistência, decerto mais interessados em que os participantes concluíssem a subida, do que com ajudas não contempladas pelo regulamento. Nem me admirava se o regulamento tivesse essa alínea da ajuda popular lá bem incentivada. 

Eu sei que qualquer leitor gostaria que esta crónica partisse agora para uma certa intersecção teórica entre cena hardcore e ciclismo, mas esse assunto precioso merece o seu próprio espaço. Fico feliz por ver um entusiasmo outrora sentido pela música, ser agora transferido para a competição sobre duas rodas.

Ver famílias tão felizes, fez-me feliz também a mim, quase tanto como o espanto por estar a passar a manhã de Domingo a dizer “força, chefe!” a atletas que subiam a rampa (com ou sem mudanças). 

Durante alguns momentos, perdi-me num delírio tão genuíno e desligado do híbrido entre vida real e virtual, que senti o meu cérebro entrar em modo de filmagem, obrigando-me a perceber a vida inteira num conjunto frames. Nunca foi a minha intenção escrever uma crónica futurista, mas ver a sucessão de bicicletas envoltas no esforço físico dos seus ocupantes, só me lembrava do Marinetti, das composições com caracteres expressivos, e da forma como todos esses movimentos arrastam a imagem na momento e na memória. 

“Oh Dinis, não parece que estamos a ver o Boccioni fora da tela?” – disse-lhe eu, convicto do conhecimento de pintura do meu interlocutor. Só que quem concordou comigo foi esta crónica, onde o Dinis aparece agora, depois de me ter aparecido lá na rampa. Tinhamo-nos rido tanto juntos com o atleta que celebrou o seu belo tempo com um cigarrinho de Amber Leaf acabado de enrolar. 

É que olhando para a diversão à volta, para a felicidade na cara dos lisboetas, as varandas decoradas, o espírito popular de partilha e diversão, a Subida da Rampa aproxima-se dos Santos Populares e dos arraiais de bairro, de uma certa impressão da feira ou bailarico, de cada ciclista ser uma voltinha neste carrossel de entusiasmo. 

Ainda sonho com a prática de alguma modalidade com a malta do Relâmpago, mas vaidoso como sou, já me dava por contente com o equipamento deles, meio Aston Villa, meio West Ham, num contraste elegante de azul e bordeaux (a cor ideal para o pullover de um comunista, porque o vermelho seria demasiado óbvio). 

* Nasceu em Setúbal, mas sonhou com Lisboa desde cedo. Aproveitou a carreira em publicidade para se mudar para a cidade e entretanto já passou uma década a mudar de apartamentos. É pós-graduado em Artes da Escrita pela FCSH, onde ganhou forças para perseguir os seus sonhos literários. Sente que Lisboa o aceitou e continua agradecidíssimo por isso. Twiter: @infinitogesto

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