A inflacção atingiu o povo em cheio e uma cidade já estropiada por uma crise imobiliária chegou a lançar o pânico. A renda já comia o salário, o supermercado passou a comer o resto. O Abílio, que é técnico de recursos humanos, começou a ver-se aflito. O apartamento do Lumiar já tinha sido um risco, a avaria mental do Putin passou a ser outro bem maior. Para juntar ao full-time, começou a procurar um part-time.

Refez o CV, deixou-o todo bonitinho, pôs-se de plantão à caça no LinkedIn. Enviava candidaturas simplificadas a torto e a direito, punha alertas de pesquisa para tudo o que era remoto, até chegou a candidatar-se a tradutor árabe-chinês, apesar de falar apenas português. Depois de vários envios em série, lá recebeu um telefonema. Já nem se lembrava daquilo.

A voz, que do outro lado parecia de criança, não o animou por aí além. Ao telefone, a entrevistadora, em vez de falar, leu um papel a velocidade Rosa Mota. E acabou assim: “Quer ter uma fonte alternativa de rendimento? Parece-lhe uma coisa que possa aprender a fazer?”

Ele não ouviu metade, mas acabou por dizer que sim. E perguntou: “Mas é freelancer, certo? Ou há um escritório?” Havia um escritório, mas ele que não se preocupasse. Também havia reuniões, mas ele que não se preocupasse. Preocupava-o apenas perder tempo numa coisa incompatível, mas avançou na mesma, ainda que irritado com a mania que as empresas tinham de não entregarem as cartas a priori.

A fase seguinte não era uma entrevista, mas um seminário. Uma hora inteira metida naquilo e quase 200 participantes. Morenos, de olhos esgazeados, comidos pela esperança, ali estavam os brasileiros que a Europa conseguiu enganar. Em frente a eles, falava uma miúda dos seus 38 anos. Vamos chamar-lhe Joana, que é o nome dela. Oradora, isto e aquilo, formada em Biologia. Que estaria ali a fazer? Como se vai de Biologia para um negócio daqueles? E que negócio era aquele?

Ainda não se sabia, tudo era mistério. E o mistério demorou a desvendar-se, já que a Joana passou dez minutos a falar sobre o filho, que sofrera tanto com a distância quando ela dera aulas longe dele, coitadinho. A vida seguira, a vida agora era outra, ei-la em Lisboa capaz de sustentar o próprio filho, ei-la mulher de sucesso, a orar como uma oradora a sério para um batalhão de gente que lhe estava suspensa nas palavras.

Para a plateia, tinha a dar uma coisa muito forte: “um diálogo construtivo para a vossa vida”. “Toda a gente está aqui por esse motivo”, garantia a Joana-guru, ou Joguru, penetrando na cabeça alheia a fingir que tinha os bolsos da camisa Gucci cheios de cartões de crédito. Era como ouvir a líder de uma seita.

“Vocês não sabem como conseguir o que procuram”, dizia ela a uma plateia multinacional que procurava toda o mesmo: trabalho honesto e pago. Esse trabalho era “uma oportunidade única para mudar de vida”. Ela já tinha estado naquele lugar obtuso, o querer e não poder, o procurar sem ver. “O que é que acham? Alguém já viveu isto?”, atirava a uma multidão calada e chocada por se ver transformada em criança de 12 anos tratada como se tivesse sete.

O anúncio do LinkedIn dizia “Marketing digital”, a descrição era meia dúzia de linhas num português que parecia escrito por um nativo de seis anos do chinês filho de pais indianos que estivesse a aprender espanhol há uma semana. De marketing pouco se falou, aquilo era coaching sentimental.

A Joguru metia números para parecer mais inteligente perante uma plateia em que as pessoas faziam de macacos amestrados. “20 – 50 – 10, esta é a equação em que vive 80% da população mundial: 20 anos a crescer, 50 a trabalhar para desfrutar de 10.” Assim chapado, não lembrava ao diabo, mas ela garantia que era possível viver de outra maneira.

Era possível não se fazer nada e ser-se rico. E nem era preciso ter aptidão nenhuma, talento, inteligência, pais com boa conta. Bastava estar ali naquele seminário. Ela arranjaria forma de quase 200 desgraçados verem o caminho para a luz. A Joguru disparava frases e sorria, mas era tão banha de cobra que se percebia que era uma banhada e quem ficasse até ao fim ia afogar-se.

Já tive catequistas com menos mania de que podiam salvar os outros, mas o seminário era às sete, eu combinara jantar na casa do Abílio e enquanto aquilo corria ríamos os dois. Acháramos todo o processo bizarro, mas era difícil imaginar que uma proposta de trabalho se tornaria numa ida a um psicólogo.

Depois surgiram os nomes: este e aquele israelita e a b:hip. E depois de dar o nome da empresa a Joguru explicou desavergonhadamente o esquema de pirâmide. “Se não somos pessoas correctas, de que nos vai adiantar? De nada”, dizia ela, a propósito sabe Deus de quê, com um sorriso que tinha mais plástico do que um contentor amarelo, enquanto espetava um esquema nos incautos.

A meio, a Natacha disse qualquer coisa, muito simpática, com ar de quem estava feita com a outra. O Abílio tentou interagir também, mas recebeu um aviso: “O anfitrião não permite que os participantes ativem seu próprio som.” Também não se acedia ao chat, não se podia fazer nada. Umas 20 pessoas já tinham saído, mas as outras, a menos que fossem voyeurs como nós, podiam ser comidinhas pela cobra, que de língua afiada palrava num ceceio que era só mentira.

Falava do esquema e metia conversas paralelas a fingir intimidade, a sacar a simpatia dos desgraçados que se agarravam a um bocado de esperança como um náufrago a madeira podre. A Joguru era a madeira podre.

E a Madeira Podre resolveu fazer de cada aleatório membro da plateia um CR7 em potência. Avançariam para a luz se fossem únicos. Viveriam num T5 com aquecimento e aspiração central nas Avenidas Novas se tivessem as características que os distinguissem dos demais. “Sem elas, não continuem”, rogava. Não valeria a pena. Aquilo era só para os duros.

O tempo que demorou nisto, o suspense. Já ninguém se aguentava. O que seria? Que teria de ter cada um deles? Onde estavam as chaves do reino dos céus? E se não tivessem o maior brio, o maior brilho do mundo, se não fossem supra-sumos, estavam fora de jogo? Ela tranquilizava: “Têm de ter estas características ou estar dispostos a tê-las.” Havia esperança para o mais burro de todos. Era só querer muito, adaptar-se, fazer pela vida, e então seria rico. “Entendido? É o momento de tirar notas.”

Com alívio, constatei que nenhum dos então 164 participantes se preocupava em escrever. E pumba, a brasa: “Necessariamente, têm de ser pessoas diferentes.” E continuou, falando pelos outros: “Mas, Joana, diferentes como?” E respondeu, tão eloquente que parecia o Balzac: “Vamos reflectir um bocadinho. Estamos numa era digital. Efectivamente. Correcto? Mas quem capitaliza através da Internet ainda é uma minoria.” A avó dela, por exemplo, não entendia o marketing digital. Até os pais tinham dificuldade.

“Porque somos uma minoria”, dizia ela. “E como é que se olha para uma minoria? Com estranheza. Há sempre opiniões, comentários, palpites.” Por isso era preciso algo que distinguisse os desgraçados dos demais: “Têm de ser pessoas diferentes porque têm de estar dispostas a lidar com isso.” Soava a ameaça de que, se alguém confessasse ao mundo que trabalhava na Internet, choveriam injúrias, socos, bombas, cabeças degoladas. E por isso era preciso dar o peito às balas, a cara aos pingos da chuva, os músculos à luta.

Depois deste carácter hercúleo, de quem não se rende à banalidade da maioria, era preciso ter ambição. “Adoro pessoas ambiciosas”, dizia a Joguru. E para ter resultados com aquele sistema [de pirâmide] era preciso ter ambição. Por momentos, a ex-bióloga deu em lexicógrafa: “Ambição não é avareza, atenção! A avareza não é boa.” Parecia que ia dominar a semântica, mas mandou o povo às urtigas: “Quem não sabe o que é avareza pode ver no Google.” Depois de ir ao Google, era a hora da desforra, de o povo erguer a cabeça como um titanossauro: “Se a vossa ambição em algum momento foi oprimida, é hora de a irem buscar.” Estávamos em frente ao épico.

E então só faltava o compromisso. Era como o ginásio, sabem? “Quem não estiver comprometida a ir ao ginásio, por mais que lhe doa o corpo, nunca será fit.” A Joguru dizia-o cheia de certezas sem saber que os músculos precisam de descansar para crescerem.

Estava dada a receita. “Se não tiverem estas características, peço-vos, não continuem.” Mas continuar para onde? Ora, quem quisesse estacionar o seu próprio Mercedes no Saldanha, tinha bom remédio: no dia seguinte, teria um seminário de quatro horas e meia. Não era um seminário qualquer. Era um seminário de alto rendimento. Que espectáculo. Iam falar do esquema e da logística, da forma como a empresa pagava, dos constituintes dos nutrientes, dos produtos.

E a Joguru garantia: “O conteúdo que vai ser partilhado é conteúdo que muita gente lá fora paga muito dinheiro para receber.” É que as pessoas que davam aqueles seminários eram as que estavam a gerar resultados, “e muito bons resultados”. Lá fora havia muito boa gente a pagar fortunas, mas ali era apenas um “ticket simbólico”.

E era necessário para separar o trigo do joio, já que a empresa poderia focar-se “em quem se identificou com a informação”, que é como quem diz “morreu afogado no banho dado pela cobra”. O ticket [sic] custava 7,5 euros, mas na primeira hora custava apenas 5! Que maravilha, como perder a oportunidade? Claro que quem se metera ali contava ganhar uns trocos, mas um desconto talvez não fosse mal de todo.

A Joguru calou-se, ninguém fez perguntas. Não sei se, no dia seguinte, algum incauto apareceu. Provavelmente, a Joguru continuará desavergonhadamente a aliciar desesperados para um esquema em pirâmide, ainda que este modelo já tenha sido sinalizado pela PJ.

Na Internet, qualquer busca pela b:hip levará a comentários de quem passou uma hora como a que eu passei em casa do Abílio, daí que tudo seja feito em secretismo. É preciso aliciar no escuro, torturar com banha a ver quem aguenta até ao fim. É preciso saber dominar e instrumentalizar o desespero. E tudo isto sem vergonha na cara, prometendo mundos e fundos, 10 mil euros por mês, uma casa espaçosa no centro de Lisboa.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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