Nós planeamos e depois a vida acontece. Foi também assim nas minhas férias, tão sonhadas quanto atribuladas, nas quais descobri pela primeira vez os verdadeiros sabores do medo e do alívio.

No papel, era um roteiro magnífico: começávamos a dois no Rio de Janeiro, onde íamos casar uns amigos num terraço com vista para a Baía de Guanabara. Daí seguíamos em passeio romântico para Salvador, na Bahia, onde nos aguardavam belas praias e melhor comida. Passados uns dias em São Paulo, a explorar museus e a abraçar amigos, seguiríamos para a Cidade do México, onde nos engordaríamos com tacos e mezcalitas.

A terminar, a cereja em cima do bolo, planeada com amor pela minha mãe ao longo de meses: uma semana em Playa del Carmen com a minha família, pais, tios, irmãos, primos. Uma viagem que servia para relembrar os meus avós, que não partiram à frente sem nos darem uns aos outros.

Uns dias antes do casamento, contudo, o pai da minha namorada, já doente, deu entrada no hospital. Os médicos não atreviam previsões e nós começámos a ver voos para regressar do Rio ainda antes da boda. Demos as férias planeadas por terminadas, mas o medo de perder um pai relegava esse pensamento para segundo plano. Foi com o coração apertado que esperámos novidades e que soubemos que a condição frágil do doente era estável. Fomos incitados a continuar e continuámos.

O casamento foi lindo, como são todos aqueles que unem pessoas que se gostam e de quem gostamos. Dançámos como se fosse o último dia no Brasil, esperançosos de que não fosse. Foi assim, pé ante pé, que andámos o resto da semana. Viajámos para Salvador, onde nunca desfizemos as malas, e aproveitámos cada dia como se o seguinte fosse de retorno.

Salvador é, como outras grandes cidades brasileiras, uma pintura de alegre vida com traços muito largos de pobreza e insegurança. A tranquilidade com que um lisboeta anda na rua pode ser um perigoso defeito em muitos bairros brasileiros, mas deixou-nos ver muito: entrámos em ateliês de artistas baianos como Menelaw Sete e Ricardo Miranda, cheios de cor, história e talento, e aí fizemos amigos, descobrimos as maravilhas da gastronomia baiana, pisámos areia fina em mares azuis. Choveu quase todos os dias, nalguns muito: e nós felizes por estarmos ali e estarem todos vivos.

Foi antes da viagem para São Paulo, no penúltimo dia, o único em que não choveu, que recebi uma chamada do meu irmão mais novo. Começávamos lentamente a abraçar a ideia de que as férias seguiriam o curso projetado, entusiasmados com a voz mais enérgica do pai dela ao telefone. Passámos a tarde em Itapuã, tal como na música de Toquinho e Vinícius, bebendo água de coco e falando de amor. Os nossos sorrisos eram já menos temerosos. A culpa de estar no oásis das férias enquanto a idade e o tempo continuavam a fazer das suas aos outros levantava-se dos nossos ombros.

E o meu irmão disse-me que a minha mãe – saudável, tanto quanto se pode ser, enérgica como uma rapariga nova – tinha desmaiado com convulsões e sido levada, inanimada, por uma ambulância para um hospital em Espanha, onde estava de férias. Lembro-me de não sentir nada, primeiro, como se me tivessem rapado com uma colher aquilo que as pessoas usam para sentir coisas. Não sei que nome damos a esse vazio para onde me fugiu o pensamento e o olhar.

Quando regressei a mim convenci-me de que não sabia nada, e de que não seria nada. Fui pragmático. Essa negação pareceu-me demasiado egoísta e ao poucos permiti-me chorar a ansiedade toda que sentia. Na Europa era de noite e não havia novidades. No dia seguinte viajava para São Paulo. Voltámos a ver voos de regresso: para Espanha, para Lisboa, para qualquer sítio.

Com a manhã vieram mais notícias: a minha mãe em coma induzido, uma mancha suspeita num exame, uma maré de incertezas e as várias possibilidades aterradoras em aberto. Será que sobrevive? E em que condições? Com que sequelas? Como é que isto está a acontecer? Porquê?

Descobri nesse dia o que era o medo. Viajei para São Paulo em lágrimas com a certeza absoluta de que daí a pouco estaria de volta a casa, para fazer nem sei o quê.

No dia seguinte, contudo, acordou um raio de sol. Se na primeira videochamada o seu olhar ausente me deixou aterrado, na segunda descobri-lhe o sorriso que me convenceu de que a minha mãe ainda estava ali. Ri-me chorando incontrolavelmente de alívio. A recomendação foi esperar antes de comprar as viagens de regresso. Afinal, podemos ser impotentes em qualquer lado.

Cada nova chamada renovava essa esperança de que tinha sido só um susto. A falta de explicações inquietava – ainda inquieta – mas sentíamo-nos novamente com os pés no chão e, por isso, voámos para a Cidade do México, onde ainda antes de provarmos o primeiro nacho com guacamole apanhámos uma intoxicação alimentar que nos deixou a pão e água durante dia e meio. Nesse dia, as dores de estômago foram o nosso maior problema: uma agradável lembrança de que já não tínhamos problema nenhum.

A sombra era então outra: a antecipação da ausência inevitável dos meus pais nas férias de família que a minha mãe tinha planeado com tanto ensejo. Era uma dor pálida se comparada com aquela que acabávamos de abandonar. Mas o ser humano tem uma relação íntima com a insatisfação: se ao susto e ao medo se sucede o alívio e a alegria, logo se descobre o desgosto de não ser tudo melhor do que é.

E assim chegámos a Playa del Carmen, à última estação de uma viagem que esteve para não ser; que foi, mas com muitas lágrimas, ansiedade e culpa; e que terminava sem toda a gente junta, mas com toda a gente viva.

E pensava eu: que triste estou por não estarem cá. E também: que feliz estou por estarem bem.

Aterrar em Lisboa e cair-lhe nos braços soube-me a todas as iguarias que deixei de saborear por conta da dor, do medo, da ansiedade.

Hoje, escrevo-vos estas linhas só com o olho direito aberto. Como se as memórias que trouxe das minhas férias não bastassem, os banhos de mar com lentes de contacto brindaram-me com uma infeção ocular, que calha ser periférica – caso contrário, poderia perder uma parte da visão.

Daqui a umas semanas regresso ao estrangeiro, onde normalmente vivo sem sobressaltos. Desta vez, vai-me custar mais a partida. Se me faltassem outras – e não faltam – estar perto de quem me importa é a melhor razão para voltar de vez à cidade que chamo de casa. Já não falta tudo.

Lá fora, onde não posso ir por causa da luz, o Sol de Lisboa brilha. Da janela vejo a minha mãe, de sorriso aberto e bikini novo, a falar nem sei com quem.

Enxugo uma lágrima, que tanto pode ser da felicidade como do antibiótico.

Nunca me senti tão sortudo.

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2 Comentários

  1. Meu querido Joao , afinal a coragem para enfrentar a vida esconde-se bem no fundo da ainda pureza do nosso coracao. Nunca abandones os ensinamentos da tua mae.

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