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A processar…
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Admito as minhas fraquezas e eis a principal: sou muito fácil de enganar. Nunca, em algum momento da minha vida, penso que a história que me contam talvez não seja bem assim, que alguém empole isto e aquilo, que o herói dos poemas tenha tido medo ao desembainhar a espada perante o inimigo.

É natural que quem conheço nunca tenha levado porrada, tenha sido sempre campeão em tudo, e que apenas eu seja azarada, cómica às criadas de hotel, errónea vida fora, enxovalhada vida dentro, vilipendiada ao espelho, angustiada pelas pequenas coisas ridículas, que apenas eu não tenha lido Homero ou Álvaro de Campos.

Alguém fala comigo e eu julgo-o incapaz de um acto absurdo, de sofrer um enxovalho, de ter sido menos do que príncipe na vida. Eu serei o buraco negro, os outros livres de pecados, infâmias, violências, cobardias. Com tanta ingenuidade, espanta quem me conhece que eu não seja eleitora do PS.

O Luís percebeu isto e eu, que nem sou de grandes empatias, lá me fui enchendo de comiseração por ele. A vida dele, sempre tão certo, tão príncipe, era pior do que a minha, porque a expectativa era maior. E toda a gente lhe via as enomes, inúmeras qualidades, e todas as mulheres sonhavam com ele noite e dia. Sem vilezas, sem infâmias, o Luís trilhava o seu caminho impedindo a mágoa alheia.

Foi assim com a Sónia, coitada, que depois de uns beijinhos ficou toda caída. Foi assim com a Mafalda, que namorava com outro mas só tinha olhos para ele. Foi assim com a Cris, a ex-namorada que ele largou, coitada, e nunca mais foi a mesma. Foi assim com a miúda do trabalho, que, casada há pouco e com dois filhos, não conhecia da vida melhor do que ele. Foi assim com a Maria, amiga de uns amigos, com quem só tinha estado duas vezes. Foi assim com a Inês, a quem o Joel achava graça, mas com quem ela não podia namorar porque só tinha olhos para o Luís.

E não era que os olhos vissem uma bela coisa. O corpo era um esqueleto que não tinha massa magra à volta, o cabelo demasiado espesso, os dentes desalinhados. Mas tinha ali uma ironia fina, a cultura de quem leu Philip Roth até ao fim, e sabia de cor todas as músicas do Brel. Facilmente se acreditava que alguém lhe achasse graça.

Quis o destino que eu ficasse amiga da Inês. De início, não foi fácil – até me custava vê-la tão caída por alguém que não a queria. Ainda assim, enrolavam-se de vez em quando e o Luís era sempre tão sincero, sempre tão correcto, sempre com uma calma que era quase apatia a tentar evitar-lhe o sofrimento. Dizia-me assim: “Tenho sempre medo de a magoar.”

Quando ela o mencionava, eu desviava o assunto. Assim meio sem querer, fiquei ali no meio. Bem queria que ela seguisse à sua vida, e aquele Joel nem parecia assim tão mau. Mais bonito do que o outro era de certeza, e até já tinha feito um safari na Tanzânia. O problema era ser católico e, de qualquer forma, ela recusava-se a falar sobre ele.

Nisto, o Luís começou a zangar-se sempre que nos encontrávamos. Em grupo, tínhamos de ser sempre os três, o que me deixava no lugar incómodo de segurar a vela. Até fazia birra se fôssemos tomar café enquanto ele trabalhava. Íamos sempre ao Bairro Alto ou ao Tuareg de Telheiras, porque ela se recusava a ir ao Intendente. A sós, o Luís dizia-me sempre que estava preocupado com a Inês, cada vez mais apanhada por ele, e ele cada vez com mais remorsos por não saber onde se punha a barreira.

Um dia, a Inês contou-me tudo. Tinha passado meio ano, mas ela só queria o Joel. Lisboa estava até manchada pelo som dos passos dele. Uma vez, tinham jantado num chinês, dado um passeio no Martim Moniz e dado as mãos pela primeira vez na Casa Independente. Depois de ir cada um para seu lado, ela nunca mais lá voltou porque a lembrança era ainda carne viva.

E eu, parva da minha vida:

– O quê? Eu achava que tinhas dado tampa a esse gajo por causa do Luís.

Ela, mais parva ainda:

– Do Luís? Mas por que raio?

Eu, meio à toa:

– Foi a ideia com que fiquei. Que tinhas mandado o Joel passear em Fevereiro, porque tinhas conhecido o Luís em Janeiro e se tinham engatado logo no primeiro dia.

O queixo caiu? Não sei. Assim à distância, vejo o queixo cair-lhe.

– Engatado o Luís? Eu?

Por momentos, julguei que estivesse só a gozar comigo. Era tão fácil fazê-lo. Eles não faziam nada à minha frente, mas eu assumo sempre a obrigação de um certo recato, e longe de mim ou deles que levassem os nossos cafés para outro campeonato. Segurar a vela era uma coisa, a roupa interior de alguém era outra bem diferente. Perguntou-me:

– Mas porque é que eu haveria de querer alguma coisa com ele? É tão magrinho.

– Sei lá. Pelo menos, é ateu.

Estávamos no café do Monumental, nesses tempos em que Lisboa era bela, eu tinha muito tempo livre, passe para o cinema e hambúrgueres numa mesa ao lado de janelas de alto a baixo que me davam vista para a cidade. Se bem me lembro, foi o Luís que me levou pela primeira vez àquele sítio, depois de ter dado tampa à Sónia.

A Inês ficou muito aflita. Mais do que aflita, ficou zangada comigo. Como é que eu me atrevia a achar tal coisa dela? Conhecêramo-nos pelo Luís, é certo, mas ficáramos amigas à velocidade vertiginosa de uma paixão de comédia romântica de domingo à tarde. A partir desse dia, começámos a falar todos, a coisa deu-se bem. Prova de amizade tão forte é ainda anteontem ela ter vindo à minha casa, o filho dela me ter vomitado em cima de uma primeira edição do Harry Potter e de eu ter fingido que nem estava chateada. Voltando: chateou-se porque eu a achava uma serpente. Se éramos amigas, ela nunca se meteria com o gajo por quem eu estava caidinha.

O meu queixo caiu? Não sei. Assim à distância, sinto-o cair.

Analisámos as duas histórias como dois eixos narrativos. Ela tinha estudado Teoria da Literatura, bem sabia escrutinar os elementos. Na minha cabeça, ele nunca teria inventado nada – ele era campeão em tudo. Preocupado como era, talvez tivesse entendido mal aqui, talvez tivesse percebido mal ali. O pobre rapaz andaria atormentado a achar que fazia mal às duas. A Inês ainda atirou: “Será que ele não quer que saiamos sozinhas para não toparmos isto, não nos matarmos por ele, não deixarmos de ser amigas?”

Deu-se um clique e aqui a minha ingenuidade foi ao ar. Já não havia hipótese. Era preciso pôr tudo em pratos limpos. Da minha parte, era certo: ele sabia sem recursos que não havia ponta por onde pudesse pegar sem mentir como um maníaco.

Eu fui a primeira. Disse ao Luís que achava que não devíamos ser amigos. Ele perguntou se era por causa da Inês. Eu, admito, lá disse que sim. Levou a coisa a mal, sentiu-se trocado – e foi. Depois disto, ainda lhe dei boleia para casa, e o caminho até ao Jardim da Parada nunca me pareceu tão comprido. Tinha o tamanho de uma história que teve um início e foi ao fim.

A Inês foi logo a seguir. Disse-lhe o mesmo, e ele empancou a sério. Porque é que isto e aquilo, como é que aquilo e isto. Ainda deixou no ar que deviam namorar os dois. Ela, que na minha cabeça já o tinha mais ou menos feito uns meses, disse-lhe que não. Depois ligou-me e disse: “Aposto que agora vai a correr para a Cris.” E eu: “A Cris? Não, ela largou-o por causa do Fred.”

Já isto era piada. E a Inês: “Olha, não sei, talvez a Maria, então.” Fui eu a ficar confusa: “Qual Maria? A do padel?” E lá tive de esclarecer, com domínio próprio, que ela jogava noutro campeonato.

Uns dias depois, eu e a Inês percebemos a comiseração no tom de alguns amigos. E começámos a ligar os pontos: um cérebro tão deludido pela vida tinha de inventar uma história para sair por cima. De certeza que a outros lorpas o Luís contaria que tivera de partir o coração às duas para não magoar nenhuma. Sabe-se que, na cabeça dele, poderão as mulheres não o ter amado, mas ter sido ridículo? Nunca.

Ontem vimo-lo no café. Já há muito não íamos a Campo de Ourique, talvez por nos lembrarmos de que ele morava lá. Lá estava ele com mais uma miúda. Dizia assim: “Os tipos ofereceram-me uma promoção, mas eu é que não quis. Tenho mais que fazer. Estava farto daquilo há muito, não faltam empresas que me queiram, e até por muito mais.” Foi assim que soubemos que ele tinha sido despedido e que deturpava a história sendo vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

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Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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