A dúvida é tão rara na esfera pública como o vácuo na natureza. Falo-vos de uma dúvida genuína, não da dúvida retórica para gerar empatia que se resolve depois sempre em certeza. Percebe-se que assim seja, porque a atenção é um bem precioso e grande parte das dúvidas são apenas um sinal de que não se refletiu o suficiente. Mas há dúvidas que tendem a persistir, por mais que se pense no assunto, ficando a opinião sempre dominada pelo último argumento que se leu ou ouviu. E quando é assim, talvez seja mais útil partilhar a dúvida do que ficar calado enquanto toda a gente com convicções inabaláveis se manifesta.
A ideia de regulamentar a prostituição como um qualquer outro trabalho deixa-me num estado de dúvida permanente, o que não será excentricidade minha, a julgar pelas divisões entre as feministas desde os anos 1970, bem como os diferentes enquadramentos legais para a prostituição que encontramos na Europa.
Também os números modestos de assinantes de uma petição para a regulamentação da prostituição e despenalização do lenocínio (5205) indicam que, talvez pelas hesitações internas que provoca, esta causa é pouco mobilizadora quando comparada com os números de assinantes com opiniões fortes e instintivas sobre o cão Simba ( 49 956), toureiros (69 545), políticos (84 219), deputados (111 111), José Sócrates (152 336) e o juiz Ivo Rosa (194 214).
As prostitutas* nas ruas de uma cidade marcam qualquer adolescente. No princípio dos anos 1980, ainda andavam na Avenida da Liberdade, e a imagem que guardei era de miséria e decadência, impressão que reforcei quando, alguns anos depois, ao passar pelo Intendente, uma prostituta com sinais de toxicodependência insistiu em vender-me o corpo pelo preço de uma refeição de tasca. Era ainda a imagem que me dominava o pensamento quando, já adulto, um amigo, recém-chegado de Amsterdão, me falou do serviço que uma profissional do Red Light District lhe prestara, obrigando-me a disfarçar o desdém.
Ao longo dos anos, fui sentindo a pressão para encarar o “trabalho sexual” sem carga pejorativa. À imagem da prostituta desesperada por mais uma dose de heroína deveria contrapor a da jovem remediada, mas ciente do seu capital sexual, que explora sem obedecer a um chulo para se emancipar enquanto estuda Engenharia do Ambiente com os olhos postos numa ONG que constrói poços em aldeias remotas e pobres.
Tudo o que me desagradava na prostituição, isto é, a miséria física e moral evidentes, a criminalidade envolvente, o tráfico de mulheres e o proxenetismo, seria apenas circunstancial e desapareceria com a regulamentação. Mesmo a minha caricatura da jovem emancipada revelaria um preconceito que nega a autodeterminação sexual e deve ser corrigida: ela não precisaria de passar o resto da vida a levar água potável a pessoas desfavorecidas, como se fosse necessário pagar à sociedade os anos de prostituição, podendo inclusive prostituir-se para financiar estudos de Direito e uma especialização em planeamento fiscal.
Em Portugal, a prostituição não é crime desde 1983, mas sendo o lenocínio (o proxenetismo) simples criminalizado, as prostitutas vivem na semiclandestinidade, sem qualquer tipo de proteção social. A proposta da Juventude Socialista para regulamentar a prostituição é, à primeira leitura, um texto equilibrado e até com algum rasgo, ao propor “modelos de cooperativas e societários, que permitam aos trabalhadores do sexo cooperar e partilhar recursos, instalações e infraestruturas para terem mais dignidade no exercício desta atividade”, uma “norma contratual geral de livre renúncia por parte do prestador de serviços sexuais” e “a instalação obrigatória de botões de pânico”. Propõe ainda regimes restritivos quanto à localização e publicidade.
Os jovens socialistas apresentam um modelo “único no mundo”, que restringe “a possibilidade de investimento privado, em prol de um paradigma baseado na gestão por trabalhadores sexuais para trabalhadores sexuais e, assim, evitando subjugação indireta de trabalhadores entre si ou, pior, por parte de outros que não exerçam esta atividade”. Menos claro é por que motivo será necessário rever a tipificação penal do lenocínio, se o modelo proposto evita a “subjugação indireta de trabalhadores entre si ou, pior, por parte de outros que não exerçam esta atividade”, mas admito o meu desconhecimento da lei e da arte de legislar.
As cooperativas de trabalho sexual dos jovens socialistas estão na linha de modelos que visam limitar a “exploração e trabalho forçado”, isto é, o “patronato de serviços sexuais” (Joana Mortágua). É, de novo, uma posição sensata, mas que levanta a questão: por que motivo se recusa esta exploração, sendo certo que o capitalismo funciona com base em desigualdades nas relações de trabalho? Parece haver uma particularidade na prostituição que vai além dos perigos inerentes à profissão e da sua história pesada, tornando simplista a visão daqueles que equiparam o trabalho sexual a um mero trabalho, como defendeu recentemente a economista Susana Peralta no seu enfático “Trabalho sexual é trabalho. Regulem-no!”
O artigo de Peralta denuncia – e bem – a hipocrisia que vigora (o legal desregulado). Menciona um estudo que revela uma associação entre a descriminalização da prostituição em espaços fechados e a diminuição das violações e prevalência da gonorreia entre as prostitutas, e outros dois (1, 2) que corroboram o primeiro. Mas deixa de fora um outro estudo onde se conclui que a legalização da prostituição incentiva o tráfico de mulheres. Não pretendo entrar numa esgrima de artigos rapidamente pescados na net; apenas pretendo lembrar que a simplificação não ajuda. A única posição prudente sobre o “modelo único” dos socialistas é a incerteza quanto ao resultado, o que não significa que não se deva tentar.
No polo oposto à posição de Peralta encontramos a prosa da vice-presidente da Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres (PpDM), Teresa Silva. As prostitutas seriam vítimas da exploração pelos homens e qualquer tentativa de regulamentar a prostituição, por mais bem-intencionada e engenhosa, normalizaria “a discriminação histórica das mulheres e a mercantilização dos seus corpos”.
A PpDM promove a abolição da prostituição, não sendo a escolha da palavra “abolição” acidental, pois remete para os movimentos abolicionistas que levaram ao fim da escravatura. Mas a evocação é contraproducente, pois depressa concluímos que a autonomia de uma prostituta, por mais limitada que esteja pela sua condição social, é por definição superior à de um escravo.
Entre o simplismo da posição progressista e a rigidez ideológica contraproducente das feministas abolicionistas é impossível traçar uma bissetriz satisfatória. Porque mercantilizar ou não o sexo põe sempre em causa um de dois valores: a autodeterminação sexual ou o sexo enquanto ato que o dinheiro não pode comprar.
As comparações que li entre a prostituição e outros trabalhos que também ninguém deseja para as suas filhas, como limpar retretes ou recolher o lixo, falham porque mesmo nos trabalhos legais e regulados que poucos aceitam há dignidade.
Uma comparação mais pertinente é entre a prostituição e a gestação de substituição ou a venda de órgãos. O legislador esforça-se para impedir a mercantilização da gestação de substituição, assim prevenindo que um gesto de grande nobreza, associado a um dos momentos mais bonitos que a vida nos dá, se corrompa pela transação comercial. Do mesmo modo, se não é possível em Portugal comprar órgãos, conta menos o argumento médico da preservação da integridade física do que a necessidade de proteger a dignidade dos cidadãos.
A prostituição não será um caso tão óbvio em que a proibição da mercantilização faça sentido, mas apenas por ter uma longa tradição, o que dá aos progressistas que defendem a regulamentação desta atividade uma paradoxal aura conservadora.
E estas duas comparações removem o puritanismo da equação, restaurando uma verdade histórica que a religião – usurpadora do poder sobre o sexo – quase nos fez esquecer e numa cidade secularizada volta a ser evidente: a da ligação profunda e inviolável entre o corpo e o sexo, a vida e o sexo, a morte e o sexo, a imaginação e o sexo (a masturbação), o prazer, o interdito e o sexo, explorada por inúmeros intelectuais e artistas. É esta “sacralização” do sexo de base biológica que parece escapar aos progressistas, talvez por anticlericalismo pavloviano.
Num livro de 2012, Michael Sandel, um filósofo político, discute vários casos de mercantilização que, na sua opinião, corrompem a sociedade, desenvolvendo a tese de que passámos de uma economia de mercado a uma sociedade de mercado, em que tudo tem um preço. Sandel diz-nos ainda que perdemos a coragem de discutir com argumentos morais.
É sintomático que os progressistas se refugiem logo na evidência empírica — a que convém, bem entendido — para construir um enxuto argumento utilitarista, enquanto as feministas abolicionistas se acantonam nos bordões de linguagem que foram migrando do mundo académico para a linguagem corrente, agarradas a uma posição que a realidade não parece justificar.
É também preocupante que no Parlamento a discussão deste assunto tivesse sido tão pobre. Porque os deputados são pagos para lidar com as questões complexas e melindrosas. Mas a tibieza e desconforto evidentes, bem como as divisões internas no PS, deixam no ar a ideia de que nada mudará. Seria uma pena, porque a proposta dos jovens socialistas, apesar do experimentalismo e da sensação de que provavelmente viria a falhar na implementação, seria um bom princípio de discussão.
*As mulheres ainda são a esmagadora maioria das pessoas que se prostituem e as discussões que critico são sobre a prostituição feminina, pelo que não fiz nenhum esforço para ser mais inclusivo.

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Vasco M. Barreto
É biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.

Lia Ferreira
Nasceu em Lisboa em 1974 e ali cresceu e fez a sua formação artística. É pintora, ilustradora e retratista. Mãe de 4 filhas, leva a vida na Arte.
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