Lá em casa, quando éramos pequenos, contava-se uma história – sei lá se verdadeira – em que um casal de lisboetas, ao sair para trabalhar numa bela manhã, constatou que o seu carro tinha sido roubado.
Desconsolados, marido e mulher recuperaram, porém, o ânimo ao fim da tarde desse dia, quando descobriram o automóvel estacionado no mesmíssimo local donde fora levado; sobre o tablier, o ladrão deixara uma nota em que pedia desculpa pelo que acontecera – fora uma urgência, explicava –, juntando dois bilhetes para o teatro, com que esperava compensar o susto e os incómodos causados.
A rua inteira ficou pasmada com a delicadeza e a originalidade de tal gesto até perceber que, enquanto o casal se ria a bandeiras despregadas das graças de Vasco Santana no Parque Mayer duas noites mais tarde, a sua casa era esvaziada pelo ladrão.
Em Lisboa, há de facto mil e uma maneiras de roubar – e a minha mãe foi vítima de muitas delas, a primeira das quais aconteceu, ironicamente, à saída da missa, quando tentava atravessar a rua e um motoqueiro lhe passou rente, arrancando-lhe a mala do ombro; a sorte foi que uma amiga a amparou, evitando uma queda aparatosa – e graças a Deus (que entretanto se deve ter arrependido) os documentos apareceram todos um par de horas depois.
De outra vez, porém, estando a minha mãe a dar esmola a uma rapariga que lhe fizera um grande choradinho, ouviu alguém gritar que a suposta pedinte já lhe surripiara o telemóvel e o metera no bolso; cercada de repente por uma multidão que queria levar a fulana a todo o custo para a esquadra, lá recuperou o telemóvel – e ainda teve tempo para dar um responso à rapariga por se fingir desgraçada.
Na mesma zona, foi um dia cumprimentada – com beijo e tudo! – por um rapaz bem vestido que lhe chamou «tia» e que, perante a sua surpresa, se apresentou como antigo colega do filho, iniciando uma conversa quase sempre feita de perguntas, cujas respostas da minha mãe lhe iam dando pistas para manter a fantochada. Mas teve azar: quando mencionou chás na Versalhes e tardes de crapaud no Estoril, falhou o alvo; por isso, assim que disse ter-se esquecido da carteira, a minha mãe percebeu a jogada e deixou-o a falar sozinho.
Acabaria, mesmo assim, por cair na esparrela de um aldrabão diplomado uns bons anos mais tarde, quando o crápula, fazendo-se passar por joalheiro à porta de uma ourivesaria, elogiou o anel que ela trazia no dedo, pedindo-lhe que o deixasse fotografá-lo para um catálogo. Orgulhosa e crédula naquele segundo, a minha mãe viu o anel voar do dedo para sempre… e nunca se perdoou.
Quem também não se perdoou foi uma amiga sua que, estando há dias sem atinar com uma chuva de riscos que inundava o ecrã do seu televisor, entrou no velho edifício onde morava e cruzou-se pouco depois com dois homens de bata que transportavam um pesado televisor escada abaixo. Crendo que eram de alguma empresa de reparações, perguntou se, já agora, não poderiam também levar o seu aparelho para arranjar, explicando detalhadamente o problema que o afectava.
Ao final da tarde, os vizinhos de cima vieram perguntar-lhe se por acaso não tinha ouvido ruídos estranhos no prédio, pois tinham-lhes arrombado a fechadura da porta e levado, até onde conseguiam perceber, a televisão novinha em folha.
Pensando que, apesar de tudo, fora ela a evitar que não tivesse desaparecido mais nada do andar assaltado, levou a mão à testa e disse apenas:
– Bem, se a vossa foi roubada, a minha foi dada.

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.