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Arthur Larrue deu aulas de literatura francesa na Universidade de São Petersburgo até 2013, ano em que foi expulso do país por fazer parte de um grupo de artistas dissidentes. No entanto, foi na cidade russa que aprendeu a jogar xadrez e se interessou pela “duplicidade” de Alexander Alekhine, um controverso jogador russo e campeão do mundo da modalidade.
“O que mais me fascina do ponto de vista literário é haver uma associação monstruosa entre um génio brilhante e a escuridão da sua personalidade”, diz.
Fiel aos czares, Alekhine deixou a Rússia em 1921, após a tomada do poder pelos bolcheviques, e foi viver para França, tendo-se naturalizado francês. Em 1927 tornou-se campeão mundial de xadrez, título que manteve até 1935 e voltou a recuperar em 1937.

Em 1945, finda a Segunda Guerra Mundial, Alekhine, antissemita e temendo as consequências de ser acusado de colaboracionismo com o regime nazi, veio viver para o Estoril, onde a neutralidade do Portugal de Salazar lhe daria cobertura.
O clima salazarista é descrito na obra de Larrue que retrata uma Lisboa “cinzenta e cheia de sombras”, controlada pela polícia política (PIDE), e que, diz o autor, foi “uma espécie de Inverno para Alekhine, já que ele vivia em melancolia, andava sempre sozinho, bebia e ia jogar onde era convidado”.
Não se sabe quem pagava o quarto onde estava hospedado no Hotel do Parque, em Lisboa, mas sabe-se que, em 1946, quando se preparava para defender o título de campeão mundial num match contra Botvinnik, morreu nesse hotel.
A causa da morte está envolta em controvérsia. A causa oficial foi ataque cardíaco, mas há quem especule que foi assassinado a tiro pelo regime soviético, por ser espião. Outra das explicações avançadas é que terá morrido por asfixia, já que terá sido encontrado um pedaço de carne alojado junto às cordas vocais.

O mistério e a controvérsia associados à vida do jogador russo estão presentes no livro de Larrue A Diagonal de Alekhine, já que transporta o leitor para a mente confusa do jogador que se reflete no seu estilo de jogo. “A personalidade de Alekhine reflete-se no tabuleiro e no seu estilo de jogo, é um espelho”, afirma.
Embora o autor afirme que o livro é baseado em dados históricos, sublinha que a obra “é uma expressão da verdade, não é uma reconstrução histórica”. Assim, o diário que escreveu sobre a estadia do russo em Espanha e em Portugal é uma construção. “Eu não encontrei o diário, mas conheço a obsessão de Alekhine pelo xadrez e os seus estados de espírito”, refere o escritor, dizendo que construiu o diário com base nestas informações.
A viver em Lisboa há cinco anos, Larrue afirma que foi fundamental estar na cidade para escrever o livro de forma a vivenciar o espírito desta. “Embora a ditadura já não esteja em vigor, é possível vivenciar uma certa melancolia na cidade e isso é essencial para um escritor”. Um escritor que já publicou um conto satírico sobre Lisboa e que costuma jogar xadrez no Jardim da Estrela.
No Bairro do Rego, no Grupo de Xadrez Alekhine há tabuleiros para todos
Onde se joga xadrez em Lisboa, há muitos anos é no Bairro do Rego que tem o mais antigo clube de xadrez da capital, fundado um ano após a morte de Alekhine, em 1947, e sendo batizado com o nome do campeão russo refugiado em Lisboa. Trata-se do Grupo de Xadrez Alekhine, que hoje conta com mais de 70 jogadores federados e onde treinam duas meninas ucranianas e gente de todas as idades.
Maia olha atentamente para o tabuleiro de xadrez. Concentra a sua atenção nas peças, mas, de repente, ouve o professor dizer: “Xeque-mate!” Sorri, derrotada, e os dois voltam a alinhar as peças para uma nova partida.É desta forma que, todos os domingos de manhã, jovens de todas as idades se reúnem para jogar xadrez, e os mais velhos à terça-feira à noite, no Grupo de Xadrez Alekhine, no Bairro do Rego. “Somos um grupo com pessoas dos 7 aos 85 anos”, explica António Garcia, presidente do Grupo.


“Foi um grupo de amigos de Alekhine que fundou o clube. Eles juntavam-se numa tabacaria na rua da Beneficência a jogar xadrez e depois da morte dele, decidiram fundar o clube e deram-lhe o nome dele, por admiração”, explica o presidente do clube. “Foi um campeão mundial que teve uma vida muito atribulada, atravessou a Guerra Civil Russa e duas Guerras Mundiais”, conta.

Apesar de o Grupo de Xadrez Alekhine não ter qualquer ligação à Rússia ou a jogadores russos, o presidente, António Garcia, refere que “Alekhine faz parte da história do xadrez pelo nível que atingiu, pelo estilo de jogo muito combativo e pelas partidas espetaculares”.
Embora atualmente o xadrez seja uma modalidade mais “democratizada”, António Garcia explica porque é que o jogo é tão associado à Rússia. “A partir de 1920, quando se organizou o primeiro campeonato soviético, a modalidade foi muito desenvolvida pelo Estado, porque era uma modalidade relativamente barata e com alguma tradição. O Estado Soviético decidiu massificar o xadrez, através do ensino nas escolas e nas organizações juvenis do partido bolchevique”, tendo desta forma a Rússia dominado a modalidade ao longo do século XX.
Hoje, o xadrez globalizou-se e isso é visível nas diferentes nacionalidades dos jogadores do ranking mundial: o número um é norueguês, o segundo francês e o terceiro chinês, ocupando a Rússia a oitava posição.
É também esta diversidade que se encontra no clube do Bairro do Rego. Lisboetas, espanhóis, chineses e ucranianos encontram no xadrez um território comum. Maia, a jovem rapariga do início da história, é ucraniana, tem sete anos e joga xadrez desde os quatro. Muito concentrada nas jogadas, a jovem observa com atenção as explicações do professor Carlos Aguiar que, de forma apaixonada, vai ensinando as táticas à turma.

A mãe de Maia, Julia Naboka, observa a aula e conta que a família deixou a Ucrânia há mais de quatro anos. “Queríamos ir viver para um sítio com mais sol e fomos para a Turquia”, mas a vontade de dar uma educação europeia às filhas e o sonho do marido de viver em Lisboa, depois de uma viagem a Portugal, fizeram que, há dois anos, a família se mudasse para Lisboa e não tenha vontade de regressar à Ucrânia.
“Com o que está a acontecer agora, não queremos voltar. Mas não somos refugiados. Quisemos sair da Ucrânia”, diz Julia. Apesar disso, vive com “bastante preocupação a guerra, pois os pais estão lá, na cidade de Kramatorsk, região do Donbass, muito perto da fronteira com a Rússia.



Vivendo o dia-a-dia com apreensão, Julia faz questão de dizer que se sente grata por estar em Portugal e em segurança. “É bom que as minhas filhas estejam em paz e em segurança. É muito importante para mim, assim não tenho medo, sinto-me segura”, diz.
Foi na Turquia que as filhas de Julia descobriram o xadrez e se apaixonaram pela modalidade. “Quando chegámos a Lisboa, elas tiveram aulas particulares, mas no verão passado vieram para este grupo”, conta a mãe, que, apesar de não saber jogar xadrez, reconhece que é um estímulo para as crianças, já que as ajuda a “desenvolver o pensamento, a memória e o cálculo”.
Embora Maia tenha sido a primeira a descobrir o xadrez, rapidamente a irmã, Alisa, de 14 anos, a seguiu. “Gosto de aprender diferentes técnicas. O xadrez não é difícil, aprender as técnicas é que é desafiante”, diz.
Ao longo da conversa vai-se ouvindo a voz do professor Carlos Aguiar que, de forma enérgica, vai dando dicas aos mais de 20 alunos, ao mesmo tempo que desenha as jogadas no quadro.
“Gosto muito da energia do professor, motiva-nos muito”, comenta Alisa. Para além disso, o facto de haver “muita diversidade” no Grupo Alekhine, ajuda-a “a pensar de formas diferentes”, diz.

Carlos Aguiar, professor há mais de 30 anos, apaixonou-se pelo xadrez depois de o irmão lhe ter oferecido um tabuleiro e afirma que é “o jogo mais apaixonante que existe” porque é “criação e pensamento”. Carlos Aguiar é também professor noutras escolas lisboetas: no Agrupamento de Escolas D. Filipa de Lencastre, no Externato a Promotora, no Jardim Escola João de Deus e na Associação Desportiva de Oeiras. Mas reserva o seu domingo de manhã para ir até ao Bairro do Rego.
E é neste clube com origens russas que as meninas ucranianas desenvolvem as suas técnicas. “Elas jogam por prazer”, diz a mãe. Mas quem sabe se não se tornam profissionais. “Em Portugal não há nenhuma jogadora profissional, poderão ser as primeiras”, diz o presidente António Garcia, com um sorriso.
* Daniela Oliveira nasceu no Porto, há 22 anos, mas a vontade de viver em Lisboa falou mais alto e há um ano mudou-se para a capital. Descobrir Lisboa e contar as suas histórias sempre foi um sonho. Estuda Ciências da Comunicação na Católica e está a fazer um estágio na Mensagem de Lisboa. Este artigo foi editado por Catarina Pires.
Sempre me recordo de ser contado em minha casa que o meu pai – xadrezista entusiasta que me tentou ensinar alguma coisa, até que me cansei de tanto perder 🙂 – tinha participado numa simultânea enquanto estudante no IST com Alekhine, que derrotou.
Terá sido em 1939-41, é possível que a Associação de Estudantes tenha algum registo – o meu pai fez igualmente parte da equipa de ping-pong do IST.
Sempre o conheci como um promotor do desporto em geral e do xadrez em particular, e foi criando várias secções nos clubes desportivos que dirigiu – tanto quanto sei, a do Sport Lisboa & Évora ainda hoje existe.