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Daniel é uma das 62 crianças que faz parte do projeto Orquestra Geração, no núcleo de Sacavém. Entrou com oito anos, tem agora 12 e toca violoncelo. A forma como trata o instrumento diz muito sobre o amor que lhe tem. “Para mim, é como se fosse um amigo. Carrego-o para todo o lado. Significa muito para mim, porque quanto toco, ponho nele as minhas emoções.”
O Projeto Orquestra Geração chegou a Portugal em 2007, na sequência de um acordo feito entre Jorge Miranda, antigo Presidente da Câmara Municipal da Amadora, e António Wagner Diniz, atual Presidente do Projeto Orquestra Geração.
Na altura, ao projeto Geração já existente no Bairro da Boba, na Amadora, foi proposta a criação de uma orquestra que aplicasse o sistema de Orquestras Infantis e Juvenis da Venezuela. Este sistema surgiu naquele país da América Latina e desencadeou uma mudança social profunda ao incluir a música orquestral na vida das crianças mais pobres.
Em Portugal, a concretização do projeto Orquestra Geração assentou em dois pilares fundamentais: a formação de professores, para que fosse aplicado o método de ensino venezuelano do El Sistema, e a garantia de que eram estabelecidas as parcerias financeiras necessárias para que o projeto pudesse ter uma continuidade.
Atualmente, a Orquestra Geração está organizada em 18 núcleos e conta com mais de 80 professores e 1170 alunos dos 6 aos 20 anos.




Sacavém é um desses 18 núcleos espalhados pelo país e está sediado no Agrupamento de Escolas Eduardo Gageiro, classificado como “Território Educativo de Intervenção Prioritária”, programa do Ministério da Educação, que tem como objetivos a prevenção e redução do abandono escolar precoce e do absentismo, a redução da indisciplina e a promoção do sucesso educativo de todos os alunos, “em territórios economica e socialmente desfavorecidos, marcados pela pobreza e exclusão social, onde a violência, a indisciplina, o abandono e o insucesso escolar mais se manifestam”.

Filipa Jordão é a coordenadora do núcleo de Sacavém, dirige a orquestra e dá aulas de trompa. Para a professora, a Orquestra Geração não é apenas mais um projeto musical. Com uma dimensão social bastante vincada, aqui a função dos professores vai muito para além da formação musical dos jovens que nela participam. Estar com os alunos, ouvi-los, ensiná-los e acompanhá-los é o principal papel dos docentes que trabalham para este projeto.
“Da mesma maneira que eu tive a necessidade de ter um professor que, a dada altura, me disse determinada coisa e me fez continuar, também há essa necessidade para estes miúdos que vivem em contextos complicados. É muito difícil acreditar no que quer que seja quando não há comida na mesa, nem dinheiro para pagar a renda ou quando existe violência, que existe.”
Aqui, fazer acreditar é uma missão conjunta, através da qual todos, sem exceção, contribuem para o futuro destas crianças e destes jovens.
Filipe Silva é coordenador do 2º e 3º ciclos e membro da direção do Agrupamento. Não tem qualquer dúvida da importância que este projeto tem na mudança de comportamento dos alunos que nele participam.
“Há casos em que alguns alunos estavam em caminhos desviantes – e refiro-me a situações extra escola, que acontecem no bairro – e, com a participação na orquestra, além do comportamento dentro da sala de aula, verifica-se uma mudança em termos de atitude perante a vida.”





A primeira vez que o professor contactou com o projeto foi noutra escola. O público-alvo era muito semelhante ao de Sacavém: um meio socioeconómico desfavorável, com muitas carências. Recorda um momento que lhe ficou gravado na memória. “Lembro-me de ver passar um miúdo, que tinha um comportamento complicado, e ia com um instrumento às costas, a sair da escola, e de pensar: como é que é possível? Vê-los entrarem e esforçarem-se, num mundo tão exigente como o da música, é fantástico.”
A Orquestra Geração é um projeto que dá oportunidades. Mas, mais do que isso, dá a estes jovens uma perspetiva diferente daquilo que poderá ser o futuro.
Para a professora Filipa, esta mudança de comportamento já não é uma surpresa. Por si, já passaram várias crianças, algumas delas com verdadeiras histórias de superação. “Nós temos alunos que, inclusive, eram conhecidos aqui na escola por serem maus alunos e problemáticos e que, agora, fazem provas para uma Rainha Sofia [Escola Superior de Música, em Madrid]. Aliás, houve uma aluna que ficou nos melhores lugares. Essa aluna era ali do bairro, que já nem se chama Quinta do Mocho, só para ser mais bonito.”
Mas é também em pequenos gestos e conversas que se percebe a importância do projeto. Ana Beatriz está na Orquestra desde os 10 anos, tem agora 20, e quando olha para trás reconhece a influência da Orquestra Geração no modo como se relaciona com os outros. “Estar na orquestra mudou muito a minha relação com as pessoas. Comecei a ficar mais comunicativa. Era muito insegura quando tocava em público.”



Ao contrário de Ana Beatriz, que já está no projeto há 10 anos, Diogo ainda é novo por estas andanças. Entrou em setembro do ano passado, mas já encara a orquestra como uma das melhores experiências de sempre. “Estar na Orquestra ajudou-me a ter mais confiança e a ter mais vontade de fazer as coisas.”
Diogo mudou de escola este ano. Está pela segunda vez no quinto, por ter chumbado por faltas, porque acordava tarde e não ia às aulas. Na Orquestra, encontrou um rumo. Desde que aqui chegou, definiu objetivos e tenciona cumpri-los. “O meu irmão toca violino e, como eu sempre o vi a tocar, também quis vir para a orquestra. Estou sempre a dizer que, quando crescer, quero ter as mesmas oportunidades que ele. E ele diz-me que eu tenho que trabalhar muito para o conseguir.”



Os alunos mais velhos são olhados pelos mais novos como um exemplo a seguir. É o caso de Mariana Santos. Integrou a primeira turma do núcleo de Sacavém em 2009/2010 e, agora, é professora no projeto.
“Lembro-me de estar na Orquestra e de ficar logo fascinada, porque as coisas andavam todas muito rápido, ou seja, de um dia para o outro, começávamos logo a tocar.” No entanto, estava longe de imaginar que faria da música a sua vida. “Quando estava no décimo ano, não sabia o que seguir e foi um dos professores aqui da Orquestra, o professor Luís, que me levou à Escola Metropolitana, para eu perceber como tudo funcionava.” Seguiu música e, recentemente, recebeu um convite para dar aulas na Orquestra Geração.
Hoje, de violino na mão senta-se ao lado das crianças para lhes dar indicações, mas principalmente para lhes mostrar que com esforço podem chegar onde quiserem.
“A Orquestra abre verdadeiramente horizontes a estes alunos, tanto aos mais velhos como aos mais novos”. Quem o diz é a professora Filipa, que explica que muitos destes jovens vivem num contexto demasiado fechado. “Por exemplo, quando vamos atuar à Gulbenkian, que é em Lisboa, para eles é fantástico, é quase como ir a outra cidade.” Beatriz Freitas, de apenas 11 anos, já tem essa noção. “Isto fez uma grande diferença na minha vida. Conheci muitas pessoas e já fiz vários concertos, em vários sítios diferentes.”
A Orquestra Geração é um projeto que dá oportunidades. Mas, mais do que isso, dá a estes jovens uma perspetiva diferente daquilo que poderá ser o futuro. Para a Professora Filipa, coordená-la é um emprego de sonho. “É incrível ver que alguma coisa nós fizemos muda vidas, isto é, que o percurso destes jovens tem a nossa mão.”
No entanto, nem tudo é um mar de rosas para estes professores. “Por vezes, é duro perceber determinadas situações pelas quais os nossos alunos estão a passar e saber que não podemos mudar aquela realidade por completo.”
No concerto de Natal, deste ano letivo, a professora lembra o momento em que uma das suas alunas lhe disse: «Professora, ninguém veio ver-me». “Lembro-me que a mesma aluna, há uns anos, chorava baba e ranho porque ninguém a tinha ido ver. Claro que nós tentamos sempre suavizar estas situações, eu até lhe disse: ‘estou aqui eu e o Professor Filipe’, mas não é a mesma coisa. Enfim, são coisas da vida, com as quais eles têm de aprender a lidar e nós estamos cá para os ajudar nisso”.
Felizmente, Daniel teve a sorte de ter a presença da mãe, no Concerto de Natal. Mesmo a correr contra o tempo, Marzia, veio ver o filho. “Cheguei um pouco atrasada por causa do trabalho, mas gostei bué. Fiquei bué feliz, bué contente.” Marzia não esconde o orgulho que sente por Daniel. “Para mim, o Daniel estar na Orquestra significa muito. A certa altura, ele disse que queria desistir, mas eu disse-lhe sempre para continuar.”

Tal como explica Filipe Silva, estes pais veem na orquestra uma oportunidade de futuro para os filhos, pois dadas as circunstâncias de vida em que se encontram, nunca teriam a possibilidade de oferecer um instrumento musical aos filhos e, muito menos, a capacidade para suportar os seus custos de aprendizagem.
“Para os miúdos, é sempre especial quando os pais assistem aos concertos, porque eles ficam genuinamente felizes. Mas eu percebo que muitos trabalham o dia inteiro e alguns até têm mais do que um trabalho. E a prioridade é a Orquestra? Claro que não. É pôr comida na mesa.”
Apesar disso, no final do concerto, a professora fez questão de agradecer a todos e deixar um apelo aos pais. “Muito obrigada por terem vindo. Espero que tenham gostado desta pequena apresentação. Tudo o que vos peço é que continuem a incentivar os vossos educandos a trabalhar e a estudar, para fazermos ainda melhor.”

Mais importante do que estas crianças seguirem, ou não, um percurso musical é perceberem que é possível ir mais longe e ter essa ambição. Uma ambição que é conseguida através da responsabilidade, do foco e da disciplina. “No futuro, a responsabilidade é importante. Muitos deles, provavelmente, não vão para a universidade, mas, independentemente do trabalho que vão ter, terão de ser responsáveis”, afirma a coordenadora do núcleo de Sacavém.
Em 2013, a Orquestra Geração foi considerada, pela União Europeia, um dos melhores projetos de intervenção social de toda a Europa. Esta distinção prova que, independentemente do percurso que estes jovens sigam, todos foram tocados pela música e pelos valores deste projeto.
* Ana Beatriz Pereira nasceu em Lisboa há 20 anos. Peniche, a capital do surf, é a sua outra casa e é no mar que encontra refúgio. A terminar a Licenciatura em Ciências da Comunicação, da FCSH-UNL, foi quando entrou para a universidade, que descobriu a cidade e as histórias que havia por contar. Conta-as agora como estagiária da Mensagem de Lisboa. Este artigo foi editado por Catarina Pires.