Cemitério dos Prazeres
Foto: Rita Ansone

A vivacidade com que Licínio Fidalgo caminha contrasta com a morbidez da sua tarefa. O jovial senhor de 62 anos é o diletante cicerone que nos guia por entre os ciprestes do Cemitério dos Prazeres até ao ventre do monumental mausoléu em forma de pirâmide, onde uma cripta se desdobra em dois pavimentos e conserva dezenas de caixões, num cenário que não deixa nada a dever a um arrepiante conto de Edgar Allan Poe.

Destemido, Licínio tateia a penumbra com a lanterna em punho.  O corredor estreito, cerca de um metro e meio de largura, ladeado por ataúdes que repousam em prateleiras de pedra. O ar escasso desce da superfície por um pequeno duto e gentilmente balouça a teia urdida por uma aranha. O percurso finda numa ampla câmara. O guia passeia o facho luminoso e revela as paredes repletas de tumbas.

A naturalidade perante os esqueletos, com o perdão do trocadilho, são os ossos do seu ofício. O Cemitério dos Prazeres tem sido o escritório onde Licínio pica o ponto há 20 anos, os últimos sete como administrador geral, uma espécie de presidente de câmara da necrópole que emula a geografia dos vivos com ruas, becos, pátios, casas portuguesas, rotundas e até um miradouro e uma privilegiada vista para o Tejo e a Ponte 25 de Abril.

Uma cidade dos mortos com área de 12 hectares, sete mil jazigos e cerca de um milhão de “habitantes”, sepultados em quase dois séculos de história dos Prazeres, desde o início das atividades, em 1833. E como as demais cidades, sujeita a problemas e desafios, que Licínio, como qualquer outro gestor, tem enfrentado com aparente tranquilidade, em nome da manutenção da paz – no caso, a paz eterna – no cemitério.

A pirâmide do duque nos Prazeres

Historiador licenciado pela Faculdade de Letras de Lisboa, o conimbricense chegou à capital na infância. A carreira iniciou-se no Gabinete de Estudos Olisiponenses e a vida entre os jazigos e mausoléus foi obra do acaso. “Houve uma grande reestruturação na Câmara e, antes de me meterem onde não queria, fiz uns contactos. Então, uma amiga disse-me: vens cá ver isto, que vais gostar. Fui, vi e gostei”, conta.

Com 12 metros de altura, a construção piramidal é o mausoléu do Duque de Palmela, o maior jazigo da Europa. Foto: Rita Ansone.

O isto a que se referia a amiga era a Divisão de Gestão Cemiterial de Lisboa. Na primeira década e meia na nova casa, Licínio dividiu-se entre os cemitérios lisboetas, acompanhando a manutenção e o restauro dos jazigos ou estudantes durante pesquisas para as teses de mestrado e doutoramento. Uma dedicação que culminou com a promoção para coordenar a mais icónica necrópole da cidade, em 2014.

A formação em História faz que o gestor contemple o Cemitério dos Prazeres com olhos de quem visita um museu. “Esta é uma construção com traços em art nouveau e uma clara ideologia maçónica”, diz em tom professoral, apontando para o imponente mausoléu de Pedro de Sousa Holstein, o Duque de Palmela, o tal em forma de uma pirâmide com 12 metros de altura, o maior jazigo privado da Europa.

Erguido em 1849 numa área de um hectare, o jazigo é uma complexa estrutura que abriga um cemitério em frente à construção piramidal, que por sua vez encerra um mausoléu e uma cripta. Ao todo, 200 almas repousam lá. “Aqui fora estão os empregados do duque”, explica Licínio, apontando para o amplo terreno. “Seguindo a tradição maçónica, os homens enterrados no lado direito e as mulheres, no esquerdo.”

O duque repousa na cripta metros abaixo da superfície, rodeado por dezenas de corpos de amigos e descendentes. Foto: Rita Ansone.

Licínio ressalta que o termo “enterrar”, referido commumente para todo o tipo de sepultamento, em algumas ocasiões é usado de forma equivocada. “Estes foram realmente enterrados, pois estão em contacto com a terra”, ensina, referindo-se aos empregados do duque que jazem no terreno. “Mas os que estão neste e em outros jazigos, não. Lá, há a inumação, um processo cujo inverso é a exumação”, explica.

Na “inumação”, o corpos estão em caixões revestidos e não entram em contacto com a terra. Foto: Rita Ansone.

O pequeno detalhe encerra uma distinção social. Os túmulos em contacto direto com o solo, mais simples e baratos, costumam deteriorar-se com maior rapidez. Os jazigos estão isolados da terra por prateleiras de pedra e os ataúdes têm o interior forrados por chumbo ou zinco. “Para preservar o corpo por mais tempo. Ninguém quer correr o risco de ressuscitar no dia do Juízo Final com uma falange a menos”, justifica o historiador.

Ainda no campo semântico funerário, o termo “mausoléu” denota um estatuto superior. A maioria dos jazigos é mais simples, construída para abrigar o caixão na parte inferior e o cimo ornado com um marco de pedra ou uma pequena capela. Os mortos mais ilustres, como o Duque de Palmela, estão em mausoléus com direito a uma “cripta”, um pavimento no subsolo onde se pode caminhar por entre os mortos.

A distinção social também é de caráter ornamental. O maior jazigo da Europa sofreu várias alterações com o passar dos anos. O formato piramidal foi uma delas, como o recuo do frontão e a inclusão de novas colunas gregas. Na parte interna, a neta do duque, a terceira duquesa de Palmela, Maria Luísa de Sousa Holstein, contratou o italiano Giuseppe Cinatti para erguer esculturas em mármore.

A escultura assinada pelo cenógrafo italiano Giuseppe Cinatti decora o interior da capela do mausoléu. Foto: Rita Ansone.

Nascido em Siena, José Cinatti – como era popular no vaudeville lisboeta – ficou famoso pelos cenários de peças no São Carlos e Dona Maria II.  Não foi o único italiano a esculpir esculturas funerárias nos Prazeres. Também cenógrafo, Luigi Manini projetou o jazigo do dono da Quinta da Regaleira, em Sintra, Carvalho Monteiro, um comerciante tão rico que ficou conhecido como “Monteiro dos Milhões”.

A morte em pé e sem cabeça

O jazigo do “Monteiro dos Milhões” guarda uma das histórias curiosas do cemitério, a de que a chave que abre a sua porta ser, diz a lenda, a mesma que abria a da mansão de Carvalho Monteiro na Quinta da Regaleira e da sua casa em Lisboa, na Rua do Alecrim. A excentricidade do próspero comerciante, de guardar a chave da sua morada eterna na algibeira até o último suspiro, teria um motivo bem mundano.

O engenheiro Aniceto Rocha e o dado que ornamenta o jazigo que ele próprio projetou: uma tentativa de apostar com a morte. Foto: Rita Ansone.

Carvalho Monteiro fez fortuna no Brasil e os rumores são de que, quando regressou a Portugal, disfarçou-se de mendigo. “A irmã tê-lo-á enxotado da porta da sua própria casa. Entretanto, a mãe repreendeu-a e ordenou que servisse uma sopa ao estranho. O comerciante revelou a identidade, cuidou da mãe, mas não deixou herança à irmã”, narra Licínio, sugerindo que uma parte da fortuna teria sido sepultada com ele.

Uma história curiosa, mas não como a do engenheiro militar Aniceto da Rocha e o seu túmulo quadrangular, ornamentado na campa por um… dado. “Talvez quisesse apostar com a morte”, arrisca Licínio. Ardiloso, Aniceto projetou um dado “falso”, cuja soma dos valores nas faces opostas não resulta em sete, como os demais. Apesar do ardil, o engenheiro não conseguiu ludibriar a morte e acabou por perder a aposta.

A morte, entretanto, encontrou Aniceto da Rocha em pé. “Parece ter levado a sério a expressão os militares morrem de pé”, explica Licínio. O engenheiro desenhou o próprio túmulo de uma forma que o caixão fosse depositado na vertical. O sistema de abertura da campa também é engenhoso: uma manípula acopla-se ao dado e, ao ser acionada, abre a trava, gira o dado e lentamente faz a tampa correr.

A bela fachada neo-bizantina decora o jazigo onde o comerciante Francisco Mantero está sepultado. Foto: Rita Ansone.

Sem pensar em batotas com a Dama de Negro, o próspero comerciante de café espanhol Francisco Mantero doou 70 por cento da sua fortuna à Santa Casa de Misericórdia e o seu corpo à ciência. O responsável pela construção das quintas das Conchas e dos Lilases, em Lisboa, sofria de uma doença degenerativa e foi sepultado em duas fases: primeiro, o tronco de Francisco Mantero e, depois, a cabeça.

O jazigo da Família Mantero está até hoje sob os cuidados da Santa Casa. Destaca-se pelo belo mosaico em estilo bizantino no topo da fachada, onde reina a imagem de um “Cristo Pantocrator”, uma das representações de Jesus, retratado com a mão em posição de bênção. Na parte interna é possível ver os dois túmulos, um maior com o corpo do comerciante e outro menor, onde foi inumada a sua cabeça.

Há também quem ainda vivo desejasse manter um olho na morte. O jazigo do comerciante de cacau José Luís Constantino Dias, o Visconde de Valle Flor, foi erigido numa das partes mais elevadas dos Prazeres. “Para ser visto pelo visconde de seu palacete, a quase dois quilómetros do túmulo, no Alto de Santo Amaro”, conta Licínio.

Miniatura do palacete do Visconde de Valle Flor, o jazigo foi erguido num sítio onde era visível ao seu futuro morador. Foto: Rita Ansone.

O jazigo é a segunda maior construção no Cemitério dos Prazeres, menor apenas do que a pirâmide do Duque de Palmela. O palacete de onde o visconde visualizava sua atual morada é hoje o luxuoso Pestana Palace e sua arquitetura serviu de inspiração para o mausoléu, uma espécie de versão em miniatura do mesmo.

Ao contrário do hotel, entretanto, o jazigo só tem vagas para 64 hóspedes.

Um jazigo no Cemitério dos Prazeres não é para todos

Hospedar-se nos Prazeres não é para muitos. Atualmente, costuma haver vagas nos talhões reservados a escritores – mantenho, portanto, esperanças – e também a artistas, agentes da PSP e bombeiros sapadores. “Apesar de a concessão dos jazigos ser uma prerrogativa da Câmara, há o costume de a devida associação de classe entrar em contacto com a administração e solicitar o sepultamento”, explica Licínio.

O talhão dedicado aos escritores, junto com artistas, bombeiros e polícias, com lugares disponíveis nos Prazeres.:Foto: Rita Ansone.

O jazigo dos bombeiros sapadores é o mais antigo de entre as classes de trabalhadores com lugar nos Prazeres. Data de 1878 e foi projetado por Dias da Silva, arquiteto responsável também pelo Campo Pequeno. Lá estão as poucas vítimas da atual pandemia que repousam no Cemitério dos Prazeres, mantendo de certo modo a vocação original da necrópole, nascida para dar conta da epidemia de cólera que varreu Lisboa em 1833.

Lápides dos bombeiros enterrados no cemitério dos Prazeres, alguns deles vitimados pela pandemia. Foto: Rita Ansone.

Até então, os enterros na cidade davam-se em espaços religiosos, dentro ou em redor das igrejas. A proibição régia, por motivos sanitários, motivou a criação dos cemitérios e o atual terreno foi uma das escolhas naturais, pois já acolhia sepultamentos ao largo da Ermida de Nossa Senhora dos Prazeres, vizinha a uma fonte tida como santa, cuja reputação de verter água com dons curativos datava de meados do século XVI.  

A Fonte Santa hoje é um esquecido chafariz na rua Possidónio da Silva, sem notícias de manter o condão. Já a ermida foi vendida no início do século XX para dar espaço a outra modalidade de espaço de culto, a Taberna de João da Ermida. Apesar de extinta, a ermida legou o apelido e elucida o mistério do nome da famosa necrópole remontar a um filme série B sobre zombies de Franco Romero: Cemitério dos Prazeres.

Cartaz indica a prescrição de um jazigo: cerca de 30 deles brevemente vão a leilão e o valor pode alcançar os 30 mil euros. Foto: Rita Ansone.

Para quem nunca escreveu um livro, atuou num palco ou no ecrã, prendeu um bandido ou apagou um incêndio, a alternativa é concorrer a um dos jazigos devolutos. Licínio para diante de um deles, na alameda número 1, sob a sombra dos frondosos ciprestes. Pertence à família do Comendador José Pereira Soares. Uma notificação fixada anuncia que em breve estará prescrito e disponível à hasta pública.

O artigo 66 do Regulamento dos Cemitérios Municipais considera abandonado o jazigo cujos concessionários não sejam conhecidos, residam em parte incerta ou não exerçam os seus direitos por período superior a 15 anos. “Após os lotes serem identificados, a administração faz a notificação e os proprietários têm 60 dias para se manifestarem. Caso contrário, o jazigo é prescrito”, ensina Licínio.

Algumas das tipologias dos jazigos, construídos no formato “capela” ou nos modelos mais simples, no tipo “agulha”. Foto: Rita Ansone.

O jazigo do comendador estará entre os 30 lotes que vão à leilão em breve, ainda sem data definida. Ornamentado com uma pequena capela, abriga até oito ocupantes. Bem localizado, teve durante alguns anos como vizinho Fernando Pessoa. “É um modelo misto, que facilmente pode chegar a custar 30 mil euros”, estima Licínio, fazendo as contas de cabeça, tendo por base o último do mesmo porte, arrematado por 26 mil.

O laborioso cálculo do valor de um jazigo envolve a área, não apenas de superfície, mas em profundidade, o estado de conservação e a tipologia. Os mais simples, com apenas um marco de pedra – o tipo “agulha” – encerram os mortos em baixo da terra. Nos modelos “capela”, os ocupantes estão inumados apenas na superfície, enquanto no “misto”, como o nome sugere, há sepultamentos sobre e subsolo.

Uma versão mais pequena do Père-Lachaise

Apesar da chuva fina, um casal tranquilamente passeia o bebé por entre as lápides. Licínio observa o carrinho contornar a rotunda, uma entre tantas que se cruzam nas 52 alamedas do Cemitério dos Prazeres. “A cidade dos mortos é um espelho da dos vivos”, sintetiza o administrador, enquanto nos guia ao miradouro, no extremo da necrópole, um pequeno pátio com vista aberta para o Tejo e a ponte 25 de Abril.

O caminho que leva até o miradouro do Cemitério dos Prazeres é ladeado por lápides: vista privilegiada do Tejo e da ponte 25 de Abril. Foto: Rita Ansone.

Uma garrafa de vinho vazia sugere que os vivos andaram a contemplar a vista dos mortos. O nosso guia confirma que, assim como outros famosos cemitérios do mundo, Prazeres é bem frequentado por quem ainda não bateu as botas. Licínio cita o mítico Père-Lachaise, em Paris, que recebe romarias de fãs para um copo ao lado do túmulo dos ídolos que repousam – ou tentam repousar – durante o sono eterno.

A menção ao cemitério parisiense não é por acaso. “O Père-Lachaise era a referência máxima à época da construção e serviu de inspiração direta. De uma certa forma, Prazeres é uma versão um pouco mais pequena do cemitério parisiense”, conta o historiador que nas férias costuma dedicar um ou mais dias da viagem a um tour pelos cemitérios das cidades que visita. “Há sempre algo a aprender”, justifica.

A coluna partida é uma das simbologias presentes nos jazigos: indica uma vida interrompida “antes da hora”. Foto: Rita Ansone.

Espelhar-se num cemitério de Paris não impediu o Cemitério dos Prazeres de ter as suas peculiaridades. Um dos exemplos são os jazigos em formato de casas portuguesas, decorados com azulejos na fachada, janelas, portinholas e beiras e eiras no teto. Uma arquitetura funerária bastante popular em meados do século passado e que se encontra apenas aqui.

O que aprendeu e ainda aprende sobre a vida entre os mortos Licínio Fidalgo partilha com os milhares de pessoas que nos últimos anos também dedicaram algumas horas a passear entre os jazigos. Ele e Gisela Monteiro, uma matemática que recalculou a rota profissional e hoje o assiste no cemitério, são responsáveis pelas variadas visitas guiadas que se dão pelo menos uma vez por mês nos Prazeres.

O jazigo da família Pessoa abrigou o corpo do poeta até 1985. Foto: Rita Ansone.

As visitas guiadas são gratuitas e os roteiros divulgados mensalmente na agenda cultural da Câmara. Com pontuação 4,5 – o máximo é 5 – no Tripadvisor, os tours vão desde a visão geral do Cemitério dos Prazeres a passeios dedicados aos escritores, músicos e mulheres lá sepultados, e à maçonaria. Um dos mais concorridos é o percurso pessoano do ilustre hóspede dos Prazeres, até se mudar para os Jerónimos, em 1985. A mãe do poeta, Dionizia, e o seu grande amor, Ofélia Queiroz, entretanto, continuam aqui.

Há ainda uma visita pela impressionante arte funerária. Aliás, a simbologia esculpida nos jazigos é de fazer inveja a Dan Brown: tochas invertidas, linhas cortadas, colunas partidas, nenhum ornamento é por acaso. “Quando a maioria dos jazigos foi construída, grande parte da população era analfabeta. Os símbolos ajudam a quem não sabe ler identificar quem lá está, o que fazia e até como morreu”, explica Licínio.

A tocha invertida, por exemplo, simboliza a chama da vida que se apaga, assim como a tesoura que corta uma linha. A coluna partida ao meio indica uma pessoa que morreu jovem. As belíssimas estátuas femininas no topo dos jazigos também têm a sua representatividade: se segura uma âncora, é a Esperança; uma cruz e um livro, a Fé; enquanto a que suporta várias crianças é a Caridade.

As imagens femininas com uma âncora, uma cruz e rodeadas de crianças representam a Esperança, a Caridade e a Fé. Foto: Rita Ansone.

O benfiquista que se lembrou do Sporting

O passeio pelo Cemitério dos Prazeres termina por onde começou, no amplo pátio da entrada. Antes do fim, ainda há tempo para Licínio indicar sua última benfeitoria: uma placa com o emblema do Sporting no jazigo de José de Alvalade, o fundador do Sporting.

“Apesar de benfiquista, achava um absurdo não se ver uma menção do rival no cemitério, ao contrário do Benfica, cujo escudo está presente em várias partes do cemitério”, justifica.

Licínio entrou em contato com alguns amigos de amigos do atual presidente sportinguista Frederico Varandas e, no fim de outubro, o mandatário esteve presente numa cerimónia simples de instalação do emblema do Sporting no jazigo do seu sócio-fundador. Tudo graças a um benfiquista.

Licínio Fidalgo e Gisela Monteiro: passeios temáticos guiados pelo Cemitério dos Prazeres. Foto: Rita Ansone

“É um trabalho exigente no aspecto emocional e físico. Já pensou o que é sepultar um morto com 200 quilos?”

Licínio Fidalgo.

Para abarcar os desafios de gerir uma necrópole – da manutenção aos amores futebolísticos – Licínio conta com apenas 14 funcionários. “Precisaria do dobro”, reconhece. Só coveiros, seriam necessários mais sete. Mas não está fácil recrutar. “É um trabalho exigente no aspecto emocional e físico. Já pensou o que é sepultar um morto com 200 quilos?”. Os requisitos, entretanto, estão aquém da remuneração de um salário mínimo nacional.

Foto: Rita Ansone

O atributo emocional também pesa e não só pelo contacto constante com o pesar de quem se despede de um ente querido. Às vezes, há situações que exigem sangue-frio. “Um dia, um senhor que acompanhava o funeral da irmã passou mal, teve um ataque cardíaco e morreu”, recorda-se Licínio, do dia em que esperava um morto e deparou-se com dois. Apesar de já estar num cemitério, o segundo defunto foi sepultado numa outra necrópole.

Diante dos constantes desafios, o “presidente da câmara” da imensa cidade dos mortos sabe que é impossível agradar a todos, vivos ou não . Quis saber se o próprio Licínio tinha um jazigo reservado para ele na cidade que administra.  “Claro que não. E depois se quem aqui está tivesse alguma razão de queixa da minha gestão?”, justificou, com o bom humor de costume, de quem sabe melhor do que ninguém que, para morrer, basta estar vivo.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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