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Um metro e oitenta e três, cinturão negro, sexto Dan em artes marciais. Aos 62 anos, Carlos Ramires é um homem habituado a lutar. Só não imaginava que os golpes que aprendeu e ensinou durante quase cinco décadas de dojo não lhe valeriam de quase nada frente a um poderoso adversário: a especulação imobiliária.
É há 12 anos o presidente do tradicional Clube Atlético de Alvalade (CAA), um património não só do bairro que ostenta no nome, mas de Lisboa. O espaço viu, desde 1949, passar pelas suas portas milhares de lisboetas, tendo zelado pelos seus corpos, mentes e espíritos, alguns deles, desde os primeiros aos últimos passos.
Velho conhecido de Alvalade e Lisboa, história erguida em quatro andares de um prédio na Rua Acácio Paiva, toneladas de tijolos, betão, aço e memórias ameaçadas de desaparecimento quando as linhas impressas em tinta sobre papel na caixa do correio anunciaram o despejo do CAA para o fim de março.

O mestre Carlos não foge, no entanto, a uma luta. Se aprendeu alguma coisa nos anos de shorinji kempo foi que, até ao fatal ippon, ainda é possível dar luta. E assim o fez, não no tatami, mas em gabinetes, noutra arte igualmente marcial. Votante do CDS, uniu forças ao PCP e essa geringonça digna de um cinturão negro da política evitou o fechar das portas do clube, pelo menos, nos próximos cinco anos.
De eleitor de Cristas a vítima da Lei Cristas
O nome do golpe que salvou o Clube Atlético de Alvalade do recente risco de despejo é “Entidade de Interesse Histórico e Cultural ou Social Local”, um estatuto solicitado pelos vereadores do PCP em benefício da instituição ainda em 2018 e concedido pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) em 2020.
“Tenho de ser sincero, não fosse o João Ferreira e os companheiros dele na Câmara e na Freguesia e a história poderia ser diferente”, afirma Carlos Ramires, tendo como testemunha as centenas de troféus nas montras do escritório da presidência do CAA e sendo este reconhecimento também uma espécie de braço dado a torcer pelo campeão no dojo.

Afinal, na prática o estatuto concedido pela CML ao clube tem o condão burocrático de atrasar as execuções previstas no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), de 2012, também conhecido como “Lei Cristas”, afamada por ter simplificado os processos de renegociação das rendas e despejos a favor dos senhorios.
“Tenho raízes no CDS e fiz campanha para a Assunção Cristas nas Autárquicas de 2017”, recorda Carlos Ramires, ele mesmo antigo vogal em Alvalade. Mal sabia que, menos de um ano depois, teria de recorrer a uma das brechas da lei que tem como alcunha o apelido da sua candidata para salvar o clube do qual já era presidente.



Em 2018, os proprietários do prédio onde o CAA está desde 1983 fizeram uso de um outro benefício previsto no NRAU e reajustaram a renda, que de um momento para o outro quadruplicou de valor.
Em 2018, os proprietários do prédio onde o CAA tem a sua sede há 41 anos reajustaram a renda em 400 por cento.
Quatro anos depois, “os herdeiros” – como Carlos Ramires se refere aos senhorios – fizeram novamente uso da Lei Cristas e, através da já citada carta, notificaram o clube da decisão de não renovar o contrato, o que implicava a saída do CAA das instalações a partir de 31 de março deste ano, quando o atual contrato expirava.
Os “herdeiros” só não contavam que o presidente do clube fizesse uso das milenares lições de disciplina e resiliência ensinadas pelas artes marciais para dar a volta ao iminente golpe de misericórdia. A construção política costurada entre o centrista e os comunistas resultou na cartada que empurra para 2027 a obrigação de deixar o imóvel.
Um clube para todas as idades
Apesar do cinturão negro do presidente, o Clube Atlético de Alvalade é historicamente conhecido por uma modalidade desportiva que não envolve luta. É por entre barras paralelas e assimétricas, argolas e cavalos de alça que circulam 60 por cento dos cerca dos mil e quatrocentos sócios. A ginástica – especialmente a ginástica acrobática – é a preferida do clube.


As artes marciais vêm atrás, arregimentando um quarto dos praticantes de desporto do clube, seguidas pelas danças e outras modalidades oferecidas pelo CAA aos sócios de todas as idades. “Costumo dizer que aqui se entra aos dois, três anos e só se sai ao morrer. É comum ver três gerações, filho, pai e avô, em atividade no clube”, diz Carlos Ramires.
Esse cariz familiar foi o ponto alto da distinção como “Entidade de Interesse Histórico e Cultural ou Social Local”, uma característica bastante visível quando chega o fim da tarde – a hora de ponta no clube – e crianças vestidas com fatos de ginástica, ballet e quimonos enchem os passeios da Rua Acácio Paiva.
A atual estrutura do clube exige cerca de 40 mil euros mensais para pagar a renda, as contas e os salários dos 40 funcionários.
“A partir das cinco da tarde, estamos constantemente sem vagas”, explica o presidente. No resto do dia, porém, a frequência é quase nula. “Sempre esteve nos nossos planos ocupar o clube em todo o horário, mas isso exige investimentos e só faz sentido investir se tivermos a certeza de que daqui não sairemos”, justifica o presidente.
A atual estrutura administrativa exige cerca de 40 mil euros mensais para honrar a renda, as contas e os vencimentos dos 40 trabalhadores, entre professores e funcionários. Os planos de nunca mais sair do atual espaço custariam bem mais caro. “O prédio chegou a ser avaliado no mínimo em 2,5 milhões de euros”, diz o responsável.

O que parece um sonho milionário chegou a ser um fio de esperança. Se hoje os “herdeiros” não escondem as suas intenções, as gerações passadas de senhorios pareciam ter outros propósitos. “O avô disse-nos que deixaria o prédio como doação, assim como o filho, mas nada foi passado para o papel”, lamenta Carlos Ramires.
Uma movimentação da antiga coligação à frente da Junta de Freguesia de Alvalade, composta por socialistas e comunistas, pensou em pressionar a Câmara, ainda na gestão Medina, a adquirir o prédio. A tentativa fracassou no primeiro passo. “Os proprietários até ouviram a proposta, mas fizeram uma contraproposta irrealizável”, conta o presidente.

A tal contraproposta consistia em a CML adquirir não apenas o prédio onde está o CAA, mas um “pacote” com os outros dois imóveis vizinhos. O que além de aumentar o valor do investimento para cerca de 8 milhões de euros, obrigava a negociação com outros empreendimentos a funcionar nos imóveis, como o jornal Observador.
Com a mudança de gestão da Freguesia e da Câmara para as mãos do PSD e do CDS, Carlos Ramires reativou os contactos com as antigas afinidades políticas. No dia da entrevista, o presidente tinha acabado de acompanhar os enviados da CML numa visita à sede do clube, na tentativa de encontrar uma alternativa definitiva para o impasse.

“Na impossibilidade de se comprar o imóvel, foi colocada a hipótese de se ocupar um outro prédio da CML ou da Junta no bairro ou até de se construir uma nova sede, o que poderia ser uma saída para uma das nossas limitações, a mobilidade”, conta, referindo-se ao facto de o acesso às salas se fazer apenas através de escadas.
O presidente do CAA ressalva que, até mesmo na atual sede, se o clube tivesse a posse de todas as dependências – o piso térreo está arrendado a um escritório -, seria possível destinar um espaço para os utentes com deficiência física.
A caminho do sétimo mandato
Nascido em Sumbe, na margem sul do rio Cuanza, em Angola, Carlos Ramires foi aluno, atleta e professor do Clube Atlético de Alvalade, até ter o rosto estampado na fotografia da selecta galeria de presidentes da entidade, exposta numa das paredes da sala da direção. “Deles, só este e eu ainda estamos vivos”, diz, apontando para o retrato do antecessor.
Após seis mandatos, Carlos Ramires prepara-se agora para iniciar o sétimo, com a eleição marcada para o próximo dia 29 de março, na qual é mais uma vez o candidato único. “Infelizmente, não há outros interessados. Os sócios gostam do clube, frequentam, ajudam, mas não estão dispostos a assumir a responsabilidade”, lamenta.

Carlos Ramires prepara-se para disputar nova eleição em 29 de março, na qual é mais uma vez o candidato único.
Desistir, porém, não faz parte do dicionário deste atleta, professor e gestor, que nos anos 1970 conheceu um grupo de universitários japoneses que praticavam uma arte marcial desconhecida em Portugal, o shorinji kempo, uma variação do kung fu. Desde então, tornou-se o representante nacional da modalidade.
“Aprendi a técnica com esses japoneses e, quando eles voltaram ao Japão, fizemos, eu e outros cinco lutadores portugueses, um juramento de continuar os ensinamentos do shorinji kempo em Portugal. Desses, apenas eu mantive a palavra”, conta o cinturão negro, enquanto ensaia um chudan mae geri para as lentes da Mensagem.
O pontapé na altura do externo é um dos golpes letais do shorinji kempo, cuja tradução para o português sugere uma prática bem mais suave. “Significa a via do diamante, da purificação”, explica o sensei, que aprendeu japonês nas suas 14 viagens à Terra do Sol Nascente, com direito a uma estada de três anos numa delas.
“Tirando a educação básica, dos meus pais, foi no shorinji kempo que fiz a minha formação como homem e encontrei um sentido de vida.”
Carlos Ramires

“Tirando a educação básica, dos meus pais, foi no shorinji kempo que fiz a minha formação como homem e encontrei um sentido de vida. Dele, trouxe a disciplina e a resiliência para o meu trabalho na direção do CAA”, reflete o cinturão negro centrista que apostou na diplomacia para aliar-se aos antigos rivais na política e evitar o despejo do clube.
Uma pequena vitória com prazo de validade de cinco anos. Tempo para o presidente sensei se recuperar do recente waza-ri, recuperar o fôlego, firmar os dois pés no chão, erguer os punhos e concentrar-se no próximo round, pois, como diriam os seus novos camaradas de luta, a mão do mercado pode ser até invisível, mas é pesada.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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