O cartaz na parede apela ao “esforço, dedicação, devoção e glória”, mas apesar da mensagem motivacional ser dirigida aos futebolistas do Sporting, assenta como uma luva no espírito que embala graciosamente os corpos dos alunos que dançam no amplo salão polidesportivo anexo ao estádio de Alvalade, na aula de tango conduzida pela argentina Maria Eugenia Brandulo.

Enquanto os inconfundíveis acordes do ritmo portenho ecoam pela sala, Maria Eugenia passeia pela pista de dança improvisada com uma das alunas, Joana, emulando a cena clássica do filme Perfume de Mulher, quando Al Pacino na pele de um ex-militar cego conduz uma jovem ao som do pranto de Gardel em Por una cabeza. Tal qual a personagem de Al Pacino, Joana também não pode ver, mas é capaz de bailar.

A professora conduz a aluna Joana, que não vê, mas dança: a tangoterapia tem supreendido pelos seus resultados. Foto: Rita Ansone
Os dizeres que traduzem o empenho dos alunos nas sessões de tangoterapia. Foto: Rita Ansone

Como Joana, os demais alunos de Maria Eugenia têm suas limitações. Há, por exemplo, o Pedro, portador de trissomia 21, um dançarino atento e perfecionista, e o Nelson, com paralisia cerebral, que mesmo numa cadeira de rodas substitui Joana e rodopia guiado pela professora argentina. “Isto é o tango. É o coração que está a bater”, relembra Maria Eugenia. Isto é mais do que tango, dir-se-ia, é a tangoterapia.

Os anjos da bailarina

Nascida em Buenos Aires há 36 anos, a bailarina que trocou a capital argentina pela portuguesa, em 2018, ministra em Lisboa aulas de tangoterapia desde 2020, uma técnica que utiliza a dança como ferramenta terapêutica. Já o fez nas freguesias de Benfica e São Domingos de Benfica, em lares de idosos e com mulheres vítimas de violência doméstica, e fá-lo em Alvalade com pessoas com deficiência.

A bailarina argentina começou a dançar aos 7 anos e já adulta compôs o corpo dos tradicionais cafés de tango de Buenos Aires. Foto: Rita Ansone

“Era uma adolescente retraída e o tango ajudou-me a construir a minha personalidade, a conhecer-me como mulher. Foi a partir daí que percebi que o tango poderia ser uma porta de transformação, de afirmação”, explica Maria Eugenia, que começou a dançar aos 7 anos e já adulta foi bailarina de prestigiadas casas em Buenos Aires. Graças ao tango, rodou o mundo em apresentações e como professora convidada.

“Era uma adolescente retraída e o tango ajudou-me a construir a minha personalidade, a conhecer-me como mulher”

Maria Eugenia Brandulo

Entre as paragens, Itália, Rússia, Grécia, Alemanha, Suíça e, claro, Portugal. “Antes de viver em Lisboa, já havia passado pela cidade imensas vezes”, conta a bailarina, num português correto, aprendido pela internet durante o primeiro confinamento. “Assim que soube que iriam fechar as fronteiras, voltei a Buenos Aires para ficar com a minha mãe. Já sentia a necessidade de aprender o português e foi o que fiz enquanto lá estive.”

Em Buenos Aires, Maria Eugénia sintonizava a RTP Play na internet e passava os dias a ouvir o noticiário. Também acedeu às aulas de português online para estrangeiros da plataforma. “Fiquei semanas a repetir ovos moles de Aveiro, até aprender”, recorda-se, bem-humorada, abrindo o amplo sorriso. Vários ovos moles de Aveiro depois, demonstra estar tão à vontade com o novo idioma como com os passos do tango.

“Há no tango uma métrica, que de certa forma é simples e permite que os alunos com limitações possam repetir os movimentos”

Maria Eugenia Brandulo

“Avança numa linha, os pés deslizam e a anca gira”, ensina a bailarina, enquanto os alunos repetem os gestos no salão. Com alunos como Joana, Maria Eugenia primeiro ensina os passos através do toque nos braços, para que em seguida sejam repetidos sem auxílio. No caso de Nelson, a professora conduz o aluno num ballet com a cadeira de rodas, sem deixar de exigir que se esforce para repetir alguns dos movimentos.

Nelson dança com Maria Eugenia: técnica ainda desconhecida em Portugal, mas bastante comum na Argentina. Foto: Rita Ansone

“Há na batida das notas do tango uma métrica, que de certa forma é simples e permite que os alunos com limitações se concentrem nesta métrica e possam repetir os movimentos”, explica Maria Eugénia, enquanto executa um voleo, o passo no qual a perna se move de frente para trás no vigoroso movimento que simula o chicotear na montaria. A plasticidade da técnica arranca aplausos de Nelson na cadeira de rodas.

Pedro faz o par com professora: a métrica do ritmo ajuda na execução dos movimentos. Foto: Rita Ansone

“Pode parecer impercetível, mas já houve fisioterapeutas que vieram agradecer-me por ter ajudado os pacientes a ampliar os movimentos”, diz a bailarina que um dia pensou em ser psicóloga, foi professora de pilates e hoje usa as técnicas de neurociência para que pessoas com limitações flutuem no salão. “Não temos braços, temos asas”, diz, guiada pelo irrequieto e diletante Pedro, portador de trissomia 21.

“Nós somos anjos.”

Muito além de uma dança sensual

Assim como confessam vários imigrantes, o céu e a luz de Lisboa foram decisivos para eleger a cidade como novo lar. Antes de Portugal, a argentina já havia trabalhado como professora sob o firmamento cinzento da Suíça e Alemanha. “Os portugueses têm um tango lindo, demonstram um enorme respeito pela dança”, diz Maria Eugenia, que para além das sessões de tangoterapia continua a dar aulas tradicionais.

“O tango é um ritmo apaixonante, mas é preciso liberá-lo do cliché de dança que evoca a sensualidade. É também isso, mas não é apenas isso”, diz a bailarina. “No meu caso, ajudou-me com a timidez, pois não era rapariga de usar vestido ou batom vermelho no dia a dia. Com as mulheres vítimas de violência doméstica, também serviu para recuperarem a autoestima. Mas vê-lo só pelo lado sensual é limitador.”

“O tango é um ritmo apaixonante, mas é preciso liberá-lo do cliché de dança que evoca a sensualidade. É também isso, mas não é apenas isso.”

Maria Eugenia Brandulo

“Há, sim, muito amor envolvido. Quando estou a dançar, estou cheia de amor, estou apaixonada pelo outro, estou a dar amor”, continua a bailarina. “É este tipo de amor que o tango pode proporcionar. E a proposta da tangoterapia é dar esse amor para que as pessoas usem o tango para expressarem o que desejam”, completa.

Maria Eugenia explica também que, apesar de ser praticamente uma novidade em Portugal, a tangoterapia é uma técnica muito utilizada na Argentina. “Não só como terapia de cura, mas de prevenção, principalmente com os idosos, na luta contra o envelhecimento precoce, o Parkinson e a esclerose múltipla”, ilustra.

Voltar a voar após a pandemia

Em Lisboa, a bailarina compõe o corpo de profissionais da CiM, uma companhia de dança dedicada à inclusão que, por sua vez, faz parte do projeto Vo’Arte, apoiado pela DGARTES, o Ministério da Cultura, a Câmara Municipal de Lisboa e a Associação Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL). A articulação entre as instituições é que viabiliza as sessões de tangoterapia em associações, lares, clubes, etc.

Maria Eugénia tem-se dividido nas sessões de tangoterapia e nas aulas tradicionais do ritmo portenho. Foto: Rita Ansone

“Como em tudo, a pandemia provocou uma quebra, principalmente em relação aos lares”, conta Maria Eugénia. “Aos poucos, entretanto, há sinais de que será possível retomar as atividades com as freguesias de Benfica e São Domingos de Benfica ainda este ano, embora haja ainda entraves de orçamento e gestão”, lamenta a professora, com as asas momentaneamente atadas às amarras da burocracia.

Nada, contudo, que os acordes do tango, os gestos suaves dos braços e um vigoroso voleo com a perna não sejam capazes de resolver.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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2 Comentários

  1. Muito humanizada esta Mensagem,,,que nos faz compreender e amar melhor a nossa cidade,

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