Na semana passada, soube que era possível ter saudades da cidade em que se vive. Às vezes, basta que a vida mude. Outras, basta que o tempo passe. Mas quando a vida muda e o tempo passa parece que não há como enganar.
A pandemia pôs-me mais em casa. Basta não sair para trabalhar para que a paisagem seja outra. E, com o tempo, também fui perdendo o hábito de aproveitar esta ou aquela hora para escrever num café. Os meus amigos existem cada vez mais dentro das minhas quatro paredes ou das deles. Quão jovem era eu da penúltima vez que passei no Bairro Alto?
Pausa para esclarecer: esta não é uma elegia à noite. A noite de Lisboa para mim foi sempre muita coisa, nenhuma teve que ver com aquilo a que tantas vezes se chama noite. Álcool, discotecas, barulho, chão pegajoso, de mim levam apenas asco e alergia. Lisboa de madrugada foi para mim outro segredo. Houve o que nasceu sem que eu previsse, o que morreu também, com o mesmo impacto. Houve o escuro abatido sobre as ruas, as vielas, os declives. Houve um casaco comprido a sair de casa a meio de uma tempestade. Houve quilómetros feitos quando havia menos gente.
Sempre gostei – ou gostava antes, quando era nova – de enfiar os pés em sapatilhas às duas da manhã e ser a única a suar na Avenida de Roma. Quantas vezes fomos só nós – eu e tu, Alvalade, só eu e tu – e Lisboa me respondeu apenas com o som dos meus passos e a minha respiração esforçada a bater-lhe lá por cima. Viver aqui durante anos foi isto: viver Lisboa a todas as horas, ver a luz que desce e morre e a nova cidade que nasce. Numa ou noutra situação, o que havia à frente era o mesmo: este céu de Lisboa que é apenas nosso.
Há uns anos, eu era jovem. E ser jovem é uma coisa muito livre e muito forte. Ainda me lembro, parecia que cada dia dava pressa. E era tão irritante ver que o dia acabava, que eu tinha de pôr a vida em pausa para dormir, que só depois do coma induzido podia estar alerta às coisas.
Em criança, a minha vida sempre foi escapulir-me dos lençóis, pegar numa lanterna, ler a noite inteira enquanto os meus pais achavam que eu dormia. E comecei muitas vezes a escrever noites dentro. Ainda andam por aí, escondidos na despensa, os cadernos com os poemas mal amanhados que me sabiam a coisa fresca e não davam nada de novo ao mundo.
Em jovem, a pulsão era a mesma. Trabalhar durante o dia, conhecer o mundo à noite. É sempre uma prova de esforço para quem detesta álcool, para quem não sabe falar com bêbedos. As vozes arrastavam-se, a minha paciência ia ao charco. E quando os sapatos me colavam na cerveja derramada era o caldo que se entornava para mim a noite inteira.
O tempo passou, a rotina mudou. Já não posso acordar às onze e meia, ir trabalhar para a biblioteca a tarde inteira, ficar sozinha até ser noite e então conviver com os meus amigos. Há ali uma fronteira nos 20 e muitos, 30 e poucos. O tempo suga, qualquer movimento já sabe a trabalho e o sono torna-se numa coisa intolerável, deixando de ser um obstáculo a ultrapassar como outro qualquer.
Na semana passada, depois de ter jantado, senti o sussurro daquele lampejo chamado juventude. Já há muito não passeava à noite no centro de Lisboa. Era só descer a Avenida da Liberdade, passar o Rossio, subir o Chiado, olhar para o Camões, subir o Bairro Alto, para saber se tudo ficara igual apesar da minha ausência. Quando fui para aquela zona, ainda não sabia o que é que me faltava.
É verdade que há menos gente e não vi ninguém conhecido. Alguns lugares eram iguais, outros tinham sido transtornados pelo tempo. Já mais lá para a frente, os restaurantes e os bares escuros, meio chiques, pareciam-me mais a Nova Iorque dos filmes do que a Lisboa que eu conheço. Mas o pior era mesmo estar à espera de uma coisa e pôr-me ali a olhar para outra.
É verdade, eu gosto do movimento de expansão, mas dentro de mim só há revolta ao ver uma hamburgueria que agora é pizzaria. Cristalizar lugares como se cristaliza a infância dá nisto – qualquer sombra de mudança sabe-me a traição.
Foi bizarro. Andar na minha cidade como se voltasse a uma cidade em que fui feliz. E, de repente, até senti o choque de deixar a vida andar sem lá meter os pés. É o mal de um preguiçoso como eu. E é um mal ainda pior de um obsessivo-compulsivo como eu. Terei culpa de ceder ao meu quotidiano?
Claro que tenho, e Lisboa não merece a minha culpa. Lá dentro, a olhar para ela – eu, que agora moro noutra zona da cidade –, tive saudades da cidade que foi minha.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.
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