Se depender dos planos de Filipe Leal, Portugal será conhecido como a terra do fado, de Cristiano Ronaldo, do pastel de nata, dos elétricos e da… c-shirt. Confecionada com o tecido leve das t-shirt, mas costurada com o corte da tradicional camisa – daí o “c” ao invés do “t” – a invenção tem sido a aposta da marca Fluyt para firmar o ADN lisboeta no cenário da moda internacional.
“Apesar de Lisboa ser uma metrópole, os lisboetas ainda mantêm traços mais clássicos na hora de se vestir. Nem o estilo desportivo, naturalmente descontraído, é assim um tcharán!”, explica Filipe Leal, 37 anos, lisboeta de Alvalade criado na Costa da Caparica, amante dos desportos urbanos que trocou o corte severo das fardas para os setores da restauração e hotelaria pela leveza da moda urbana.

O conceito de “tcharán!” é fundamental para entender como uma marca concebida numa garagem em Alvalade ocupa montras de Espanha, França e Suíça. “Há uma tradição de a moda desportiva apostar no floral, no estampado ou em cores mais fortes. Entretanto, o lisboeta não é muito fã deste estilo tcharán”, diz Filipe, abanando os braços para ilustrar a intensidade da tendência.



“Como lisboeta, percebi que a alternativa seria um desportivo mais clássico nos tons e no corte”, continua o antigo designer que há 12 anos se fartou das noites em branco no trabalho por conta de outrém para ser patrão de si próprio. A primeira investida no ramo da moda foi na confeção de fardas Modifique, mas apesar do sucesso do empreendimento ainda se ressentia da falta de algo que desafiasse a sua criatividade.
Até que um certo dia, numa garagem de Alvalade…
Garagem-escritório-loja-estúdio
Após 18 anos de praia na Costa da Caparica, as tardes de sol e sal sobre a prancha de surf ou o shape de um skate chegaram ao fim e Filipe estava de volta a Lisboa.
Não só de volta a Lisboa, mas ao bairro onde veio ao mundo, Alvalade. “Nasci aqui perto, na Clínica de São Miguel, na rua Frei Tomé de Jesus”, diz, enquanto organiza as camisolas sobre a mesa que ocupa a parte central da garagem convertida num misto de escritório, loja e estúdio fotográfico.



Assim como a clínica, a garagem nos números 10 A e B da rua António Ferreira compõem a sua topologia sentimental. “Este prédio é da minha família e foi aqui que passei os primeiros anos de vida, antes de ir para a Margem Sul”, diz. A clínica e a garagem são os vértices de um triângulo que se unem à Escola do Bairro de São Miguel, perto de onde vive e trabalha, onde também estudou e onde hoje estudam dois dos três filhos.
Foi justamente na garagem onde empilhava a bicicleta, os patins, os skates e a bola de futebol que nasceu a Fluyt. “O nome vem de uma nau mercante holandesa que terminou os seus dias como um navio pirata”, explica. Não por acaso, o logotipo da sua marca é uma cacatua, o pássaro parente próximo de um papagaio que se aninha nos ombros do capitão corsário.
A garagem estende-se por 80 metros quadrados e inclui para além do escritório, dezenas de chariots, mesas, um lounge e um estúdio fotográfico.
No início, em 2017, o empreendimento ocupava parte da garagem e resumia-se a uma secretária, cadeiras e uma espécie de arquivo para a papelada. Em 2018, nasceria a primeira coleção da marca com ADN lisboeta. “Produzimos 14 modelos e 350 camisolas, e pusemo-las à venda nas redes sociais. Em menos de dois meses, não havia mais nada. Foi o sinal de que o negócio tinha o seu potencial”, conta.
E realmente tinha. Hoje, a garagem estende-se por 80 metros quadrados e inclui para além do escritório, dezenas de chariots, mesas, um lounge e um estúdio fotográfico. “Usamos o estúdio para as sessões fotográficas para produzir material para as redes sociais”, explica Filipe, apontando para o imenso foco de luz e o sistema retrátil que faz descer uma espécie de “fundo infinito” em pleno espaço.

Filipe explica que a garagem-loja-escritório-estúdio funciona como um showroom da marca, já que o grosso das vendas acontece pela internet. “A Fluyt nasceu com uma forte pegada digital e, quando veio a pandemia, enquanto muitas lojas tiveram que se adaptar ao e-commerce em cima da hora, nós já tínhamos tudo pronto”, conta. A “pegada” virtual, entretanto, não impediu o cuidado na decoração do espaço físico.
O ambiente informal e cool tem a assinatura do proprietário. “Foi a oportunidade de dar vazão ao meu lado designer”, diz. “A marca nasceu num quarto da minha casa e quis manter a impressão de continuar em casa, com um pouco mais de estilo”, diz, definindo a decoração, construída a partir de móveis e objetos abandonados que ele mesmo reforma, incluindo um sofá de pele de três lugares que assentou como uma luva no espírito vintage da garagem. “Tenho uma certa obsessão com o retrô.”
Um olho no digital, outro na Baixa de Lisboa
A obsessão também explica alguns detalhes das roupas que produz, como nas camisas axadrezadas, talvez o padrão mais “tcharán” nos chariots. “Gosto que as peças acabem sempre na faixa preta”, confessa. Outra exigência são os colarinhos sempre mais pequenos do que o normal. Desse temperamento obsessivo nasceu a peça que para ele melhor representa o gosto lisboeta: a c-shirt.

A t-shirt com formato de camisa é uma alternativa ao forte calor do verão de Lisboa. “Há quem não se veja numa reunião com uma t-shirt, apesar do tecido leve ser ideal para as altas temperaturas. O corte com colarinho e botões, no entanto, empresta um tom mais sério e formal, mesmo com as cores mais leves que usamos”, explica.
Além da venda pelo site, as c-shirts têm sido comercializadas em algumas lojas multimarcas de Lisboa e também em Espanha e França. Os modelos desportivos forrados na parte interna, por sua vez, caíram no goto dos suíços e podem ser vistas nas montras de algumas villas em estações de esqui.
“Num negócio com uma visão digital, é preciso alterar as coleções com mais velocidade, para que quem acede ao site perceba as novidades.”
Filipe Leal
Parte da logística internacional da marca está nas mãos do novo sócio de Filipe, o amigo João Trancoso, 35 anos. “Para me concentrar melhor no desenho das peças e na divulgação, era preciso que alguém fosse responsável pela gestão. E o João tem mão para isso e graças à chegada dele passámos a um outro patamar”, afirma.
Dedicado ao design, Filipe prepara a incursão da marca lisboeta também na confeção de calções, no próximo verão. Livre dos meandros da gestão, conseguiu também criar mais, ao ponto de a Fluyt manter no mínimo duas coleções por estação, uma produção que mais do que duplicou o volume inicial.

Seguindo o planeamento do sócio João, a segunda coleção dedicada ao inverno está programada para o fim de janeiro. “Num negócio com uma visão digital, é preciso alterar as coleções com mais velocidade, para que quem aceda ao site não tenha a impressão de estagnação e perceba as novidades”, diz.
Apesar de a nau da Fluyt navegar a rede mundial de vento em popa, o próximo porto da marca deve ser a Baixa de Lisboa, epicentro turístico da capital. “Temos observado como as nossas roupas vendem bem entre os turistas nas lojas multimarcas. A tendência é a de abrirmos uma loja própria ainda este ano”, diz o capitão Filipe, a mão firme no leme, disposto a levar a cacatua para voos mais altos.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Acho as camisas giríssimas, parabéns. Surpreende-me que num bairro com problemas de estacionamento se dê licença para ocupar todo o espaço de uma para loja (ou oficina como noutro ex.) para negócio. Lamento que se promova as compras on-line que deixam a sua enorme pegada ecológica.