O Bloco das Águas Livres no centenário do seu arquiteto, Nuno Teotónio Pereira. Foto: Inês Leote

Nuno Teotónio Pereira já perdera a vista mas o seu olhar ainda percorria as memórias do edifício das Águas Livres, um dos mais emblemáticos que construiu na cidade de Lisboa, que ele podia já não ver, mas que continuava a sentir como dele. Recordava cada pormenor como se os anos não tivessem passado sobre o cimento e o tijolo de cada bloco. Afinal, a arquitetura é resistente e sobrevive à passagem do tempo, como diria alguém que lhe era muito próximo e que neste mês em que se comemoram 100 anos do nascimento de Teotónio, traz a saudade ainda no peito.

O arquitecto Nuno Teotónio Pereira. Foto: DR

Passaram apenas seis da sua morte, que o arquitecto Nuno Teotónio Pereira foi longevo. E os moradores do Bloco das Águas Livres ainda se lembram bem do dia em que o arquiteto lhes contou a história da casa deles, no dia 31 de janeiro de 2014 na apresentação do livro Bloco das Águas Livres – a perfect building de Michel Touissant e Maria Melo.

Reunidos na sala de festas do Bloco, por onde entra a luz do sol como em tantos outros locais deste prédio que privilegia as janelas na sua exposição a poente/sul, recordam esse encontro. Lá fora, os prédios escalam o céu da cidade. E daqui se vê a cidade, uma perspetiva única num dos prédios com melhor vista, no alto do Rato, por cima da Av. D. João V. Mais precisamente na Praça das Águas Livres n.º 8 e Rua Gorgel do Amaral, nº1. Nas proximidades, o aqueduto e o jardim das Amoreiras. Ao longe, o rio.

Quem mais contempla é esse velho amigo de Teotónio: o arquiteto Bartolomeu Costa Cabral, o seu braço direito na construção deste edifício. “Aprendi com o Nuno Teotónio a importância da harmonia do espaço e da luz natural”, diz o arquiteto de quase 93 anos, como se ainda fosse aquele jovem que aprendia com o seu mestre. “A arquitetura fala com as pessoas e estabelece um diálogo que pode ser afetivo entre as pessoas que a usam”.

“Tal como se ama um país ou um sítio, pode amar-se uma casa”, continua Bartolomeu. Casa é onde o coração está, como se diz popularmente, e estes moradores concordam. É que o Bloco das Águas Livres, mais do que um monumento de interesse nacional (como foi classificado em 2012), é para os seus 70 condóminos isso mesmo: casa.

E uma casa especial, bem desenhada, bem vivida. A ilustradora Clara Vilar não se coíbe de usar o verbo “amar” para se referir ao Bloco das Águas Livres. Sempre foi apaixonada pelo edifício, onde o pai morava. “Era daqueles sítios que, se me perguntassem onde eu gostava de morar, eu diria o Bloco das Águas Livres, mas nunca achei que isso seria possível”.

O vídeo feito para o livro Bloco das Águas Livres – a perfect building de Michel Touissant e Maria Melo.

Tornou-se realidade há 19 anos quando conseguiu encontrar uma casa aqui, com a família. Veio para cá morar. Os dois filhos foram aqui criados, e Clara crê que eles “amam” o edifício tanto quanto os pais. Um dos filhos seguiu mesmo para Arquitetura na faculdade, e o pai não exclui a hipótese de a vivência no Bloco ter influenciado essa escolha. “Acho que ele tem uma inclinação para as artes visuais, mas gostamos tanto de viver aqui, sempre lhe chamámos a atenção para a arquitetura do prédio”, explica Pedro.

Viver neste edifício desde pequenino deixa marcas, e António Dias Coelho bem que o pode confirmar. Os pais mudaram-se para o Bloco poucos anos depois de este ter sido construído e António cresceu aqui. “Usufruí muito deste prédio enquanto criança: os espaços estavam todos ligados, havia aqui uma lógica na construção, na arquitetura, que nos tornava próximos uns dos outros”, recorda.

Foi também graças ao Bloco das Águas Livres que António se apaixonou por Almada Negreiros, um dos artistas que surge representado no edifício, num dos painéis de mosaico vidrado das entradas, a que se juntavam um vitral de Manuel Cargaleiro (já retirado), um painel de Frederico George, baixos-relevos de Jorge Vieira e o painel de José Escada. Todas estas obras estão integradas no edifício que teve outros luxos mais banais: foi um dos primeiros a ter aquecimento central e condutas do lixo, na década de 60.

Mais tarde, ao regressar, António, já casado, descobriria um pormenor que tinha escapado ao menino: essa “luz” que entra por todo o edifício.

Para Bartolomeu Costa Cabral, a luz natural é um dos ingredientes essenciais de uma boa arquitetura. Foto: Inês Leote

É por tudo isso que António Dias Coelho carrega “a dor de ter deixado esta casa”. E ainda hoje muitas vezes passa pelo Bloco só para recordar – a sua infância, juventude e até mesmo a idade adulta.

O que aqui se vive é o que devia ser óbvio mas nem sempre é: a arquitetura para as pessoas. E isso tem tudo a ver com o que aqui aconteceu, como recorda Bartolomeu.  

Uma nova arquitetura para Lisboa

Na Lisboa dos anos 50 um jovem Bartolomeu, estudante de arquitetura, deambulava pelas ruas quando encontrou um velho amigo que lhe perguntou se ele já estava a trabalhar. Bartolomeu disse que não, na verdade estava a acabar a tese, mas o amigo não se satisfez com a resposta. “Levou-me a um atelier de arquitetos, engenheiros e advogados, um ponto de encontro de várias profissões”.

Foi aí que Bartolomeu conheceu não só Teotónio Pereira, como Alzina Meneses, Manuel Tainha e Raul Ramalho, e todos, além de mentores, passariam a ser amigos com objetivos comuns. Era época de grandes agitações. Lutava-se por uma mudança na arquitetura altamente condicionada pelos ideais políticos vigentes. O 1º Congresso Nacional de Arquitetura de 1948 impulsionou algumas transformações, rejeitando a noção do “português-suave” e alertando para o problema da habitação, que era escassa, e que tinha de ser resolvido pela arquitetura e pelo urbanismo.

Como? Para os modernistas, a solução passava por um modelo de blocos para a habitação com espaços de recreio, equipamentos de serviço e elementos de acessibilidade, e que se integrasse na cidade e no seu urbanismo. Em Lisboa, tinham-se já assistido a momentos de transição, com o desenvolvimento do plano municipal para o bairro de Alvalade que incluiu a construção de um conjunto habitacional no bairro das Estacas.

A ideia do Bloco das Águas Livres surgia neste contexto: replicar o que fora feito no bairro de Alvalade noutros pontos da cidade, como na área entre as Amoreiras e a rua D. João V. A encomenda chegou a Nuno Teotónio Pereira por parte da Companhia de Seguros Fidelidade, que era administrada pelo pai.

Projetar o Bloco das Águas Livres: um edifício com blocos de habitação, comércio, espaços comuns e serviços coletivos. Foto: Arquitectura, nº 65, Junho de 1959

Mas o arquiteto precisava de um aliado.

Ali estava ele, naquele dia, no seu atelier: Bartolomeu Costa Cabral. Bartolomeu passou de mero estudante a parceiro de Teotónio Pereira. O arquiteto recorda: “Aprendi com o Teotónio que a arquitetura é sobretudo funcional. Pode parecer um bocado frio, mas a arquitetura tem de ser económica, simples e sintética. Aprendi esse sentido de modéstia”.  

O resultado, conhecido em finais de 1956, é este edifício, inspirado na obra de Le Corbusier e na pequena cidade da Carta de Atenas, caracterizado pelo seu funcionalismo. Aqui, tudo foi pensado ao pormenor: os apartamentos “pequenos, mas não acanhados”, os ateliers de artistas na cobertura, a sala de festas, as escadas, os elevadores e até mesmo os puxadores das portas. “A grande originalidade deste edifício é a unidade, e tudo isso foi pensado pelo Nuno Teotónio”, explica Bartolomeu.

A unidade foi complementada pelas obras de arte e pela cor dada por Frederico George – artistas escolhidos a dedo por Teotónio Pereira. “Se o edifício não tivesse as obras de arte, ficava pior, mais pobre”, defende o arquiteto Bartolomeu.

Numa primeira fase, Bartolomeu diz que a maioria das pessoas que vieram morar para o Bloco das Águas Livres eram estrangeiros, até porque a Companhia de Seguros Fidelidade não permitia vender andares, só alugar. Entretanto o tempo passou e muitos entraram e saíram do Bloco. O Bloco passou a ter vários vizinhos conhecidos, parte da elite intelectual e académica de Lisboa.

No total são oito pisos com sete apartamentos cada um, em quatro tipologias: T1, T2, T3 e os maiores, T4 com, cerca de 185 m2. No piso 3 há seis escritórios e quatro ateliers no piso 12.

Preservar o Bloco das Águas Livres

Carlos Quevedo, que aqui mora desde 1977, diz que só duas pessoas é que permanecem desde a sua chegada, mas a ligação de afetividade ao prédio é de todos.

Essa ligação sentiu-se ainda mais no ano de 2003, quando os moradores receberam um e-mail na sua caixa de correio: a Companhia de Seguros Fidelidade anunciava a venda do edifício.

Carla Quevedo foi uma das que agiu imediatamente, respondendo que ia comprá-lo. Não foi a única. Os vizinhos juntaram-se de imediato em reuniões para exercer o direito de preferência. “Era um interesse comum de todos”, conta Carla. Uniram-se para escolher a pessoa que ia comprar o prédio – um processo que seria difícil de gerir mas que foi levado a bom porto. “Acho que se demonstrou o que as pessoas sentiam pelo prédio e umas pelas outras”, diz Pedro Magalhães.

Este sentido de comunidade continua, mesmo que o prédio comece a sentir o desgaste do tempo. O tempo não passa despercebido por estas paredes. Mas o presente abre caminho para recuperação, sem que se apaguem as marcas do passado.

A sala de festas onde todos se reúnem é um exemplo da mudança, diz Bartolomeu, apesar de conservar “as virtuosidades do princípio”. “O prédio, claro, tem muitas malfeitorias, muitas janelas que foram substituídas, mas ainda resiste, e é isso que é giro na arquitetura: é que há um cerne que permanece.”

Foi essa ideia de permanência que ficou a ecoar nos ouvidos dos moradores e que os levou, em 2018, a pensar na sua recuperação. António Dias Coelho, que assumiu a administração do condomínio (função da qual teve de abdicar ao sair do edifício), propôs as obras de reabilitação que estão a ser executadas faseadamente.

Mas a tarefa a que se propôs o condomínio não é fácil: recuperar um edifício tão característico, e já com tanta história, é assunto para longas horas de debate. Rui Mendes, o arquiteto que hoje trabalha com Bartolomeu Costa Cabral, resume o caminho que tem sido trilhado: “Tem passado por redescobrir o edifício através de idas ao arquivo, das revisões do trabalho até ao mais ínfimo pormenor e da procura de pessoas para o recuperar. A ideia é não anular o tempo que o edifício tem”.

A recuperação da fachada, a primeira das obras, foi mote para uma peripécia caricata, que todos recordam. As fitas de betão na zona das traseiras apresentavam uma cor muito particular, que ninguém estava a conseguir identificar. “Sabíamos que era uma cor diferente, mas não sabíamos bem qual”, diz António.

Até que se deu mais um desses felizes acasos: alguém reparou no casaco do arquiteto Bartolomeu Costa Cabral. Que era bege. Ali estava ela: a cor perdida.

O casaco bege de Bartolomeu Costa Cabral que deu nova cor às fitas de betão. Foto: Inês Leote

O Bloco das Águas Livres já tem quase 70 anos, mas os moradores – e amantes – querem continuar a imprimir-lhe vida. Foi por isso que se criou um site que funciona como base do condomínio e para facilitar a comunicação de quem lá vive e trabalha e é por isso mesmo que se continua a lutar contra os campos de padel e o posto de transformação da EDP que causam ruído e interferem esteticamente com o edifício (à data, já se chegou a um acordo com o Ginásio Clube Português mas ainda nada foi executado).

E tudo isto é a arquitetura viva e que “se destina à vida das pessoas”. A prova do importante legado de que agora se comemora o centenário. Nuno Teotónio Pereira vive neste prédio, ou nos outros que criou. Quando Bartolomeu entrou pela primeira vez na Igreja das Águas, projetada também pelo arquiteto, vieram-lhe as lágrimas aos olhos. “O Bloco das Águas Livres tem muito esse ambiente também”, diz, ainda a contemplar a vista.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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4 Comentários

  1. É sempre interessante descobrir tantas coisas que nos passam despercebidos, adorei conhecer esta história!

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