Era uma vez um limoeiro num pátio de Lisboa, espectador do trabalho e dos convívios no pátio da editora Reverso, num rés do chão da rua da Imprensa Nacional. Um dia, João Pombeiro, o fundador da Reverso, pediu ao amigo Eduardo Salavisa, desenhador e fundador da Urban Sketchers, para o desenhar.

Ele fê-lo, pouco antes de morrer. Desenhou-o como um sketch urbano, que era o que aquele limoeiro era, parte de uma cidade de muitos limoeiros, Lisboa. E, naquele momento, imortalizou-o.

A partir desse desenho, o que podia ser só mais um limoeiro anónimo num “pátio alfacinha”, como João Pombeiro lhe chama, foi transformado em algo mais. Passou a ser uma árvore com uma história para contar, e já com segundo capítulo: foi transformado em 21 esculturas, desenhadas e feitas pelo escultor Frederico Diz, vendidas pela editora neste Natal.

“O limoeiro é uma árvore que tem uma força e uma robustez. Não sou artista, mas consigo dizer que me passa essa ideia da robustez e por outro lado a escultura é mesmo o limoeiro que está no pátio”, diz o editor da Reverso.

A ideia surgiu na sequência do projeto “És cravo”, em que, por alturas do 25 de Abril, a partir de uma ilustração de Mantraste, Frederico Diz também criou 20 esculturas. “A ideia desta série é ‘dar corpo’ a ilustrações ou desenhos que nos interpelam, de alguma forma. Pode ser a pretexto de uma data histórica, de um acontecimento importante ou de algo mais pessoal ou emocional, como é o caso do limoeiro”, explica João Pombeiro.

Sem talvez lhe dar muita importância, com esta ideia, de transformar o limoeiro do seu quintal numa história, João Pombeiro estava a homenagear um dos símbolos de Lisboa e uma história ainda mais longa: as árvores de citrinos que teimam em dar frutos no meio da cidade. Estão nas ruas e nos becos, nos palácios e monumentos abandonados, mas sobretudo nos pátios de Lisboa.

Florescem nos logradouros como resposta a uma “aspiração generalizada”, como escreve o arquiteto paisagista Ilídio Araújo em Jardins, Parques e Quintas de Recreio no Aro do Porto, de assegurar “a vegetação de algumas plantas de particular alimentação (…) e aí poder exercer também qualquer atividade lúdica ao ar livre”.

De onde vêm estas árvores de fruto urbanas?

Os jardins portugueses sempre gostaram das árvores cítricas – basta recordar as hortas medievais e os jardins renascentistas, ou folhear os romances, cheios de referências a estas árvores.

Bernardim Ribeiro escrevia em Menina e Moça: “Mal cuidava eu o que havia de acontecer à senhora Belisa quando aquela noite, depois de dormirem todos, nos alevantámos nós sós, caladamente, e pelo laranjal do jardim, que com a espessura do arvoredo fazia então maior escuro, passámos cheias de medo“. E Eça de Queirós no Primo Basílio: “Parecia-lhe estar em Málaga, ou em Granada, não sabia: era sob as laranjeiras, mil estrelinhas luzem; a noite é quente, o ar cheira bem”.

Mas estas árvores não marcam só a vida dentro de casa ou nas páginas dos livros – há ruas cheias delas, como a rua da Sé, repleta de laranjeiras. Mas desde quando estarão em terras lusitanas e até que tempos remontam? Que páginas da História se percorre num passeio pelos citrinos de Lisboa?

Para responder, temos de viajar até tempos remotos. Os citrinos são originários do sul e sueste da Ásia, como escreve José E. Mendes Ferrão em Acerca da introdução da laranjeira-doce em Portugal. O manuscrito de M. José da Silva Thadim, e foram trazidos do Oriente pelos árabes através da Ásia e da África, chegando à Europa provavelmente pela Sicília e pela Grécia.

Uma pintura romana de frutos cítricos de Pompeia, 79-63 d.C.

De acordo com Dafna Langgut no seu estudo The Citrus Route Revealed: From Southeast Asia into the Mediterranean, da Universidade de Tel Aviv, o primeiro citrino a espalhar-se pelo Oeste foi o Citrus medica (cidra) através da Pérsia e do Levante – foram encontrados vestígios deste num jardim real da Pérsia perto de Jerusalém nos séculos V e IV a.C. Mais tarde, por volta dos séculos III e II a.C., a cidra terá chegado ao Mediterrâneo ocidental, como confirmam sementes e pólen encontrados em jardins das áreas do Vesúvio e de Roma.

O artigo Citrinos na Dieta Mediterrânica: frutos com sumo e com história, de Pedro Matias, Beatriz Duarte e Amílcar Duarte, vai ainda mais longe, encontrando a cidra na Grécia Antiga, através da descrição deste fruto no livro Historia Plantarum (350-287 a.C.).  

Mas se há fruto que não é consensual é o limão. Segundo Dana Langgut, foram encontrados vestígios de limão no Fórum Romano, em Roma, que datavam do final do primeiro século a.C./inícios do primeiro século d.C. – e há quem diga mesmo que Nero era um grande consumidor.

Amílcar Duarte, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade do Algarve e especialista em citricultura, não está, no entanto, tão certo disso. “Os citrinos cruzam-se uns com os outros”, diz o especialista. Se um citrino for polinizado por outro, vai originar algo diferente. “O que provavelmente existia no período romano era um híbrido da cidra que se parecia com o limão que hoje conhecemos”, clarifica.

Limão ou híbrido da cidra, os indícios demonstram que esse fruto e a própria cidra terão sido os primeiríssimos citrinos e os preferidos das elites. As laranjas amargas (com origem no Vietname), as limas e os pomelos são mais recentes – as laranjas terão chegado ao Mediterrâneo nos primeiros séculos depois de Cristo, mas começariam a ser mais difundidas no século X depois da conquista islâmica, surgindo em jardins e hortas. Por fim, o último fruto a surgir terá sido a tangerina: só chegou no século XIX.

A laranja-doce da China e a cura para o escorbuto em Mombaça

Por ser sumarenta e bem conhecida das terras lusitanas, a laranja-doce tornou-se nome de Portugal em muitas línguas com as quais os portugueses se foram cruzando nas suas viagens – “portakal” em turco, “portokalia” em grego, “portocal” em romeno, “portokal” em búlgaro e “bortuqal” ou “bortuqálum” em árabe.

Mas não se sabe muito bem. É bem possível que a laranja-doce tenha chegado à Europa trazida pelos portugueses depois de terem atracado por via marítima na China… mas também é possível que já houvesse laranja-doce em Portugal antes – vindas da China.

Há algumas provas da descoberta da laranja-doce na China pelos portugueses, como escreve José E. Mendes Ferrão.

Em Obras inéditas, escrito em Paris de 1675, Duarte Ribeiro de Macedo escrevia: “D. Francisco Mascarenhas trouxe a Lisboa no ano de 1635 uma laranjeira que mandou vir da China a Goa, e dai para seu Jardim de Xabregas, onde a plantou”.

Informação que consta também das Memórias sobre a Agricultura Portuguesa consideradas desde o tempo dos Romanos até ao Presente, da autoria de Veríssimo Álvares da Silva, impressas no 5º volume das Memórias económicas da Real Academia das Sciencias em 1815, e que se referiam ao período entre os reinados de D. Manuel a D. José I: “As laranjeiras começárão entre nós a cultivar-se no curso desta época. D. Francisco Mascarenhas em 1635 mandou vir da China a Goa, e daqui ao seu jardim de Xabregas as primeiras árvores de espinho, que entrárão na Europa”.

Há ainda um terceiro texto que corrobora os anteriores (apesar de ter uma data diferente), incluído no Diário Bracarense das Épocas, Fastos e Annnaes mais Demarcáveis e Sucessos Deignos de mençam, que sucederam em Braga, Lisboa, e mais partes de Portugal, e Cortes da Europa, escrito por Manoel José da Silva Thadim, com data de 1764: “Laranjas da China. As laranjas da China troixe a Goa D. Francisco Mascarenhas sendo Governador de Macau na China e da hi as troixe a Portugal no anno de 1624″.

Em defesa da teoria de que estas descrições não representam uma real prova da introdução da laranjeira-doce em Portugal e na Europa, José E. Mendes Ferrão argumenta “ser perfeitamente natural que os navegadores portugueses, ao contactarem com o meio tropical, encontrassem mujtas laranjas, mujto doces e mujto boas, mjlhores que has de Portugal porquanto se sabe que a influência do clima faz com que as frutas provenientes dos climas quentes tenham uma percentagem mais elevada de açúcares e mais baixa de ácidos, o que duplamente faz aumentar a sensação de doçura”.

Amílcar Duarte também acredita que, antes de se chegar à China, haveria já diferentes tipos de laranjeira-doce em Portugal, e que o que aconteceu foi simplesmente que as laranjas encontradas eram ainda mais doces do que aquelas a que os portugueses estavam habituados. “Provavelmente havia muitos híbridos da laranja-doce”, argumenta.

Em 2017, trinta e oito anos passados sobre o estudo de José E. Mendes Ferrão, Dafna Langgut escreve que a laranja-doce terá sido introduzida através das rotas comerciais pelos genoveses no século XV e, só mais tarde, no século XVI, espalhada pelos portugueses por via marítima.

Quer já existissem em Portugal ou não antes de chegarmos à China, Dafna Langgut defende que as viagens de Vasco da Gama (anteriores à chegada à China) terão em muito contribuído para a popularização das laranjas-doces. Aliás, em Mombaça, foram as laranjas que salvaram os marinheiros de uma maleita bem comum, e sobre a qual Camões escreveu – o escorbuto.

Na era dos Descobrimentos, os marinheiros, por deficiência de nutrientes, sofriam do escorbuto, doença que só seria erradicada bem mais tarde. Foto: Canterbury Museum

Em A Medicina nas Caravelas, século XVI, de Cristina B. F. M. Gurgel e Rachel Lewinsohn, é citado o Roteiro da Viagem de Vasco da Gama à Índia (1497-1499), editado em 1552, onde se descreve a cura do escorbuto daqueles que tinham “ingerido laranjas frescas em Mombaça”. Uma tripulação salva pelos citrinos! Mesmo assim, só em 1747 é que o cirurgião naval James Lind faria uma experiência com laranjas e limões, e constataria que eram remédio santo para a doença do mar.

Uma tradição portuguesa

Em Portugal, a cultura das laranjas e limões foi crescendo, especialmente no Algarve, por causa do clima a sul, que permitiu a adaptação, explica Ana Luísa Soares, arquiteta paisagista.

Então como vieram parar aos pátios lisboetas?

Até ao século XV as hortas onde se cultivavam árvores de fruto destinavam-se “primordialmente ao cultivo de verduras e plantas aromáticas e medicinais e só subsidiariamente seriam utilizados como locais de recreio e sítios de lazer”, como explicava Ilídio Araújo em Arte Paisagista e Arte dos Jardins em Portugal.

Os Descobrimentos e o movimento cultural da Renascença viriam alterar esse panorama.

É então que começa a despertar o gosto pelas coleções botânicas e as hortas passam a ter a designação de jardins. “É evidente que estes novos hortos, pela própria finalidade da vegetação neles cultivada, eram fundamentalmente destinados a recreação dos seus proprietários e portanto locais ou sítios de lazer e regalo”, especifica Ilídio Araújo.

A partir do século XVI regressava uma tendência que já se verificava no Império Romano: a chamada “topiaria”, a arte de esculpir plantas. E os limoeiros e laranjeiras eram óbvios, pela sua função estética, tornando os seus pátios em lugares de beleza e lazer. Além disso, há uma questão utilitária, já que estas árvores têm um “porte simpático” e é sempre bom “ter um limão ou uma laranja à mão”, como diz Ana Luísa Soares.

“O limoeiro é verde todo o ano, é uma árvore bonita e vai dando sempre limões”, explica Amílcar Duarte. “As pessoas de outros países quando veem estas árvores acham muita graça. Têm uma certa mística e um impacto visual grande, com o contraste de cores”. E num país cheio de tradições culinárias, não nos podemos esquecer que os limões e as laranjas são dos ingredientes mais conhecidos para aromatizar pratos, fazer doces ou infusões.

Estas árvores de Lisboa continuam a fascinar. Laura Lorenzo, como a Mensagem já contou, tanto as observou que fez uma descoberta: o ALBEDO, uma substância espumosa feita a partir das cascas de citrinos que transformou em placa de isolamento térmico. Na Reverso, fazem-se festas e esculturas para as homenagear. Figuram na literatura portuguesa, especialmente em escapadelas românticas.

Curam o escorbuto, salvam as nossas casas e marcam a vivência dos lisboetas, com o seu cheiro e cores vivas que sobreviveram à passagem dos séculos.

Neste momento, há uma praga a afetar as árvores cítricas: a Trioza erytreae, também conhecida por psila africana dos citrinos, que pode transmitir a doença HuangLongBing (HLB), sem cura, que diminui a produtividade da planta e contribui para o seu definhamento.
Se as folhas da sua planta tiverem um aspeto diferente, pode ser o caso e há medidas de proteção fitossanitária a serem empreendidas: é importante não transportar ramos e folhas e contactar a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV).


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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