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Os betos costumam andar de fato, os freaks de calças largas e os trogloditas costumam andar de farda. Isto saberá quem já tiver ido à rua.
Já eu não encanto ninguém. Metade das minhas deslocações implicam roupa de ginásio (a mais larga e mais barata) ou um fato de plástico para não me encharcar na mota. Da minha 125, vejo o mundo. Subo a Monsanto e desço-o como quem vai de carrossel. Lá de cima, Lisboa é uma chapada – quem leva com ela gosta de dar a outra face.
É raro olhar-se para uma cidade e ver-se nela uma menina de vestido, mas eis Lisboa a bailar como quem descobre o mundo. Indefesos, os olhos que a vêem têm de amá-la até ao fim.
Esta manhã, voltava eu de Monsanto, saíra só para ver. Nisto, sou como Ishmael: de vez em quando, não importa quantas vezes, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que me interesse em casa firme, penso em rodar um pouco e visitar o mundo das águias. É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação.
Sempre que começo a ficar rabugenta, sempre que há um Dezembro húmido e chuvoso, sempre que me vejo parada à espera de uma agência funerária, sei que é hora de me fazer à estrada o mais depressa possível. E, esta manhã, devia ter ido de bicicleta, mas a mota come o alcatrão com mais vontade.
Fui, lavei os olhos, respirei. Em teletrabalho há dois anos, que alegria é ver a rua, que liberdade é ser o monte. Desci a montanha, pronta para mais um dia igual aos outros, e ao descê-la também a vida foi abaixo.
Ao parar num semáforo, só tinha o carro da polícia à frente. O papel das motas é nunca perder tempo, ganhar prioridade numa espera. Mas aquilo era a polícia e eu quis ser discreta. Sei bem que não cumpro a lei quando me ponho em duas rodas.
O vermelho passou a verde. O carro continuou parado. Atrás dele, eu continuei parada. Mas eu tinha mais que fazer. A hora do lazer estava a acabar, tinha de me encafuar na minha vida.
Dei um apito amigável.
O polícia olhou pelo retrovisor, depois olhou para o semáforo. Seguiu. Atrás, segui com ele.
Dez metros depois, mudou de ideias. Parou o carro, mandou-me encostar a mota, quando a rua já subia, mesmo à filho da mãe.
Estavam quatro lá dentro, mas o co-piloto fazia barulho por dez. Eu fizera o favor de o ter avisado de que a estrada era para andar, comer pneus. O fardado, em vez de agradecer, zangava-se como o Zidane em frente ao Materazzi.
Louco, lívido, perdido por eu lhe ter apitado, descontrolava-se como uma criança sem mãe: “Não sabe que não pode apitar na estrada? Não sabe?!” Não sabia. Ria porque o descontrolo alheio tem graça: “Sabe como é. Vi que não tinha visto que estava verde, imaginei que não quisesse parar o trânsito.” Ele nem me ouvia, berrava ameaças de multas, “60 euros, 60 euros!”. Tão cego pela minha infracção canalha, catastrófica, desumana, nem reparou que eu vinha com os phones a ouvir Tony Carreira. Nem reparou que os tirei para o ouvir gritar melhor.
Eu nem sabia o que fazer para o acalmar. Meter-lhe um donut na boca, levá-lo à terapia? A figura era antológica: os olhos fora das órbitas, a boca a mandar chispas. Na testa dele, uma sopa de cavalo zangado. O cheiro era de falta de banho em cima de creatina. Nem eu fico naquele estado a ver os jogos do Vizela.
Quem anda nisto da vida sabe que há sempre um palerma que precisa de medir pilinhas, e aquilo foi especialmente estúpido porque eu não tinha uma para medir.
(Juro.)
Ele lá expunha, exibia os genitais. O problema é que sou míope há vários anos, não vejo nada com menos de dez centímetros. Além disso, perante o ridículo, sou um bichinho indefeso. Perante a raiva, que é sinónimo, também. Sempre que alguém berra comigo, só me dá para rir do desequilíbrio alheio.
Não me julguem: há quem ria de gente a tropeçar com as pernas, eu acho graça a coxos da cabeça. Ou seja, descontrolo os músculos faciais, mas não preciso de um colete de forças para os membros.
Soube mais tarde que, por esta hora, o treinador de símios do jardim zoológico andava desesperado em busca de um orangotango desaparecido: “O Gervásio desapareceu, ninguém sabe do Gervársio.”
E eu com o gajo à frente.
Ali estava ele metido numa farda, respondendo ao défice fálico aumentando os decibéis. Eu nunca tinha visto coisinha tão zangada. Ali desesperado, atazanado pela vida, não se pode dizer que fosse fofo. Era mais tonto, vá. Descontrolado como um bêbedo, estava sóbrio. E zangava-se comigo porque não tinha mais nada para fazer.
Sinceramente, gosto de canalhas, mas é quando estão chapadinhos no papel. Gente que se zanga só porque a zanga lhe garante a existência já me chateia um bocado. Volta e meia, vejo séries em que as pessoas andam à bulha e são badass e se intimidam umas às outras e penso logo: “Eu ali não durava dez minutos”. Nem queria durar.
Há pouca coisa na vida que me meta mais nojo do que a violência à toa, a raiva de um macaco por vacinar metida num corpo de gente. No mundo, só uma pessoa tem capacidade para me enervar a sério, mas é uma coisa contida e namoro com ela há alguns anos. De resto, a paz de ninguém me chatear é uma coisa sem preço e não me meter na vida alheia faz-me desejar que a minha dure mais.
O Gervásio queria que eu pedisse desculpa, mas não pedi. Tentou comunicar guinchando, mas eu só sirvo para falar. E falar era inútil, porque ele era dos que comunicavam com os punhos. Enquanto continuava “E não se ria, minha senhora! A multa são 60 euros!”, ainda pensei em dizer “Vamos a isso”, que é o que se diz a um homem que assedia na rua e depois foge, mas nem isso consegui, rir dava cabo de mim e talvez dele.
O macaco, enfim, cansou-se da farsa, resolveu avançar e mandou-me ir embora. Ainda hesitei sobre os phones. Afinal, estava quase em casa e uma infracção a sério era capaz de valer mais, quem sabe, do que chatear um corpo de farda que quer mostrar que é homem. Enquanto subia a rua, ainda pensei que esperava que ele não tivesse uma mulher. Tinha ar de quem se irritava se ela queimasse o estrugido.
Sempre achei que demonstrar força é a prova da fraqueza. E sei que a vida em geral dá muito trabalho, principalmente quando o corpo esconde um ego poucochinho. Em cima da rua, havia novos semáforos.
Como não tinha os phones, lá ouvi uma buzina: um carro apitou a outro para andar. Mas o Gervásio já tinha sido muito macho num só dia. A três quilómetros, o treinador de símios andava maluco à procura dele. Já se sabe que os macacos, uma vez soltos, acham graça a macacadas.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.
Obrigada por este artigo!
Está lá tudo, não seria preciso acrescentar nem mais uma linha!
Bom texto. Entrevejo uma geração de polícias menos violentos mas com desvios paranóides a requerer atenção. Também já me aconteceu dar com um muito zangado a berrar-me qualquer enquanto um colega o acalmava. Vê-se de tudo. O Gervásio desviou-me a atenção para o Gare au Gorille, do George Brassens, mas não dava, porque este Gervásio não fugiu do Jardim Zoológico. Paciência.