O início da tarde é brindado com um Verão tardio, exibindo a luz de Lisboa, cenário adequado para acolher um regresso ao passado em polaroids escritas, fragmentos da memória, cristalizados, acarinhados, seminais no novo livro de Mário de Carvalho, De Maneira que é Claro… (Porto Editora). Este livro é também «um tracejo das várias Lisboas por onde tenho andado, mais escusas, mais abertas, mais declaradas, mais ocultas», como reconhece o escritor. É lançado nesta quarta-feira.

«As várias casas onde fomos vivendo, desde a Ajuda ao Bairro dos Actores, passando pelos Anjos, Campolide, Campo de Ourique, Picheleira, deixaram, cada qual, a sua marca: um troço de rua, uma prateleira de despensa, uma certa janela em aberto, o rendilhado de um tecto, a curva de um corredor, umas sonoras escadas de serviço, um recanto de marquise, um pátio com claraboias… Disto sou também feito e com isso escrevo, mesmo sem que os lugares o saibam. Eu também os contenho», lê-se no seu livro. Este livro é também um mapa afectivo de Lisboa?

De certo modo. Um tracejo das várias Lisboas por onde tenho andado, mais escusas, mais abertas, mais declaradas, mais ocultas… Houve uma altura da minha vida, quando havia cabinas telefónicas, em que eu praticamente conhecia todas as cabinas telefónicas da cidade. Eram pontos de referência para os encontros clandestinos da resistência contra o regime. O pior é que a polícia política também o sabia…

Como é olhar, hoje, para as zonas da cidade que tão bem conhece e viu transformarem-se, como a Graça, a Penha de França ou a Avenida Almirante Reis? Quais são as grandes ausências que sente?

Um certo gradeamento em Sapadores.

Fala de cinemas que encerraram, cafés que também já encerraram. Lisboa tem sabido manter a sua memória protegida?

As pessoas mais idosas (nanja eu…) têm que aceitar o facto de que as sociedades se transformam e evoluem. A tal grade de Sapadores, onde nós nos encostávamos ao fim da tarde, comentando livros, filmes e política (segredada) já lá não está. Porque havia de estar? Só para me comprazer nas minhas recordações? Havia também uma pastelaria chamada «Mimosa», (mais uma…) onde nunca entrámos. Que será dela?

Quando estava exilado, o que recordava mais intensamente, da sua cidade?

Esse gradeamento, ao começo da Rua da Graça, a deitar para a Heliodoro Salgado e o Largo de Sapadores. À vista, era até um lugar feioso, sem nada de especial. Mas ali me encontrava, todos os dias, ao fim da tarde, com os meus amigos. Muito ali aprendi, muito livro troquei e destroquei… Já não existe a grade. Está tudo mudado. Mas ainda me vem repetidamente à ideia.

O que distingue Lisboa? Qual é a sua essência?

«Esta Lisboa prezada, é mirá-la e leixá-la.» Estou a lembrar-me de Fernão Lopes. Mas Lisboa tem sido tão bem tratada pelas diversas artes, que pareceria sobranceria da minha parte acrescentar qualquer coisa. Pode ser que nela se pressinta o peso dos séculos, as atribulações por que a cidade passou, a história, por vezes conturbada, cuja memória ecoa em tantas esquinas. E, sobre isso, paira certa inesquecível e melancólica beleza, uma variedade harmonizada, um leve vento de folhas mortas…

Em De Maneira que é Claro…, Mário de Carvalho deambula pelas suas memórias, profundamente ligadas à cidade de Lisboa, onde nasceu e cresceu. Foto: Rita Ansone

Há diversos episódios neste livro, relacionados com a actividade política durante a Ditadura. Esta vida dupla, com senhas e contrassenhas, locais de encontro previamente agendados, controleiros, mensagens cifradas, casas seguras… visto à distância dos anos, tudo parece um magnífico enredo de ficção…

Não sei se é «magnífico». A verdade é que, nessas andanças, eu considerava o mesmo: «Isto parece até um filme de ficção…» Lugares distantes (também cemitérios), calçadas escarpadas, jardins mal iluminados e um desconhecido, ou uma desconhecida que se aproximava, rigorosamente à hora certa. Pergunta: Pode dizer-me como se vai para a Madragoa? Resposta: De barco é que não pode ser. Coisas assim…

Há uma frase: «As mães nem sonhavam o gozo que eram aqueles saltos na escada das traseiras». O modo de brincar mudou muito, muito mesmo. Será correcto dizer que havia mais liberdade para as crianças, apesar de haver menos para os adultos?

Não creio que houvesse mais liberdade para as crianças. A minha mãe, por exemplo, nunca me deixou brincar na rua. Aqueles saltos na escada de ferro, lanço a lanço, voando e pousando as mãos no corrimão até que os pés desabassem com estrondo no patamar metálico em baixo, eram perigosíssimos. Um de nós partiu a cabeça e foi para o hospital. Podia, até, ter sido pior… mas que haviam de fazer as mães?

Ao recordar estes episódios, estes locais, quem o faz é o Mário de Carvalho de hoje, com o que sabe, sentiu e pensou depois, ou tentou falar deles com o olhar de então?

Nunca teria a pretensão de escrever com o meu olhar de juventude. E nunca fingi. Nem conseguiria. Escrevo com tudo aquilo que vou sendo…

Pergunto isto também pelo estilo utilizado, bastante confessional e com um discurso muito simples, directo, compreensível…

Relatar factos, sem – e deixem-me recorrer a este chavão – «fazer literatura». Mas parece haver aqui uma insinuação de que o meu «estilo», alhures, pode ser «incompreensível», que rejeito com veemência.

Mário de Carvalho, resistente antifascista, estava exilado na Dinamarca quando se deu o 25 de Abril de 1974. Não chegou a Lisboa a tempo de assistir ao mítico 1º de Maio, na Alameda Afonso Henriques. Foto: Rita Ansone

Onde assitiu ao 1º de Maio de 1974? Aqui, na Alameda D. Henriques? Certamente, um dos dias irrepetíveis nesta cidade…

Não, não assisti. Nessa altura, ainda estava à espera dum passaporte, que só me seria dado, pouco depois, em Malmö, já perto da Dinamarca.

«Só disse que era escritor ao meu décimo livro», confessava numa entrevista. Quando percorria estas ruas, quando reunia estes episódios e estas emoções, estava já, ainda que sem saber, a gizar o rascunho de alguns dos seus enredos?

Claro que estava – e, diz bem, – «sem o saber». A Penha de França, o Castelo, a Graça… Sempre tive um grande respeito pelos escritores. Declarar-me, na altura, como tal, parecia-me uma exibição de pretensiosismo.

Há diversos momentos intensos nestas recordações, um dos mais fortes será sem dúvida, o fragmento intitulado “A morte do mano”. Sentiu uma necessidade íntima, pessoal, em incluir esta recordação? Teve algum efeito de catarse?

A primeira vez que vi o meu pai abatido, a minha mãe em lágrimas, ficou-me marcada. Tentaram distrair-me, levar-me ao Parque Eduardo VII, que ficava então perto de casa. Mas eu só fazia perguntas, perguntas…

O capítulo “A morte do mano”, do novo livro de Mário de Carvalho, De maneira que é Claro, lido por João Morales.

«Vais imediatamente despir isso e que eu nunca mais te veja nesse preparo», gritou-lhe o seu pai, quando lhe apareceu com a farda da Mocidade Portuguesa. A notícia da prisão dele é outro dos momentos evocados neste livro. Ele foi a sua grande referência ética?

O meu pai era um homem duma só palavra e com grande rigidez de princípios. Muito conceituado entre os amigos e nos meios (escassos) que frequentava. Candidato a deputado nas listas da oposição. Passei a ter o cuidado de despir, ou ocultar, aquela farda – de «piolho verde» – antes de o ver.

A sua inesperada prisão foi para mim um choque tremendo. Nunca mais esquecerei o momento em que, na rua, a mãe veio, contra os hábitos, ao meu encontro e me comunicou a notícia em voz muito baixa: «o teu pai foi preso». Espanto, espanto e raiva… Como era aquilo possível?

O capítulo “O dia em que levaram o meu pai”, do novo livro de Mário de Carvalho, De maneira que é Claro, lido por João Morales.

Nasceu em 1944, mas só publica o primeiro livro em 1981. Nunca teve vontade de escrever ficção, antes do 25 de Abril, ou escreveu “para a gaveta”?

Várias vezes me deu, em jovem, para escrever ficção. Era natural, andava embebido nisso, filmes e livros. Por outro lado, a consciência de que neste país e nesta língua havia grandes autores, pontos de referência, porventura inatingíveis, não deixava de ser o seu tanto inibidora. Acresce que um amigo, em tempos já muito remotos, me confessou uma opinião negativa sobre um inédito meu. Coisa sem importância, de passagem. Fui sorrindo, mas, por dentro, caiu Tróia! Ficou para depois…

Profissão: advogado. O que lhe trouxe o Direito para a Literatura? E, fazendo o caminho inverso, esta fez-lhe jeito, em decisões e análises jurídicas?

«Tudo influi em tudo», acho que era Michelet quem dizia. Lidar com literatura é um exercício de imaginação. E a imaginação faz muita falta no Direito. Hipóteses novas, soluções novas, desenlaces imprevistos… mas sempre fundamentados. E, também, os casos, as pessoas, as situações, não raro estranhas e inesperadas, sublimes ou grotescas, que nos vão aparecendo.

Quando escreve sobre os comunicados produzidos na universidade, remata: «o 25 de Abril não caiu do céu». A universidade perdeu o peso que tinha na construção e discussão de ideias, de mentalidades, de formas de pensar e pôr em causa as ideias?

Dificilmente me pronunciaria sobre a universidade de hoje. Desconhecimento imperdoável. Agora, o que me parece evidente é que as chamadas «crises académicas» no seu anseio – e na sua prática – representativa, anteciparam o 25 de Abril, criando um ambiente, hábitos democráticos e dirigentes que com a Revolução haveriam de vir ao de cima.

É um utilizador regular das redes sociais, pelo menos do Facebook. Sente que esta ferramenta abre algumas possibilidades na comunicação, no convívio social?

Claro que sim. Novas perspectivas, outra gente, revelações e surpresas. Certa alarvidade que se queira afirmar rejeita-se facilmente.

Mário de Carvalho é um utlizador ferrenho das redes sociais. Foto: Rita Ansone

Há alguns anos disse mesmo que «os livros são mais mencionados e comentados nas redes sociais do que nos jornais». No entanto, o problema das redes é que tudo se passa a uma velocidade estonteante, mas com uma duração muito mais curta. Muito do que escreve nas redes, quase tudo, irá desaparecer rapidamente…

O que se escreve nos jornais também desaparece e estará esquecido daí a umas horas. Além disso, as redes têm uma dimensão lúdica que não é desinteressante. Apostar, descontraidamente, no efémero e transitório, também pode ser divertido. Num caso ou noutro, os pesquisadores do futuro, havendo-os interessados, saberão encontrar o que procuram.

Publica este livro no ano em que festeja 40 anos de publicações literárias. Persegue formas novas, na sua escrita, ou a opção é acentuar as que já domina?

O que sai vem naturalmente. As preocupações com o «estilo», nem sempre bem-sucedidas, terão apenas a ver com repetições, rimas, ecos, inadequações, etc. Escrevo sempre livros diferentes, creio haver variações de estilo, conforme os assuntos. Digo «creio», fiando-me no que me dizem, porque nunca (ou muito raramente) volto aos meus livros. Nem revejo as reedições. Isso é trabalho dos revisores e revisoras, sempre simpáticos e disponíveis. E a verdade é que, se «o estilo é o homem», como dizia alguém, como não há de mudar à medida que o homem muda?


* João Morales é jornalista, programador e dinamizador cultural, escreve na imprensa desde 1993. Fez variados ciclos, festivais e iniciativas. Dinamiza acções de mediação e motivação à leitura, em escolas, bibliotecas e outros locais e integrou diversos espectáculos de poesia musicada.

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2 Comentários

  1. Deu-me um grande prazer com esta entrevista ao escritor Mdc.
    Obrigada. Permita-me inserir in Lusofonias na Europa!
    RDC

  2. é um texto simples cheio de sinceridade que desperta a vontade de ler o livro -um documento importante sobre a 2ª metade do séº XX

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