Há uma história que é contada na minha família sobre o meu avô paterno e de como ele foi dado como morto na Revolta de 1958, no Líbano. Foi um dos primeiros militantes do Partido Socialista Progressista libanês e a sua natureza irrequieta levou-o a envolver-se nos grandes conflitos do seu tempo.
Quando descobriram que afinal estava vivo, sentenciaram-no a uma pena de prisão, sendo libertado ao fim de um ano devido a uma extensa família por sustentar. Dos meus cinco tios paternos, um é jornalista na área política, três são militantes em partidos e vários já foram candidatos em eleições locais. Quase todos combateram na guerra civil libanesa.
As mulheres mantinham-se arredadas da tradição política que corria na família, ensinadas a conformarem-se a um papel mais conservador. Na sua juventude, o meu pai também se aventurou na política, mas cedo fez escolhas pela família que o afastaram desse caminho. Talvez porque eu não tive a oportunidade de crescer junto deste núcleo familiar mais alargado, levei imenso tempo a compreender como somos, em parte, moldados pela nossa herança genética.
A minha relação com a política não parecia destinada a concretizar-se enquanto crescia numa cidade tão extraordinariamente pacata como Lisboa. Fui sempre uma criança e adolescente imersa em literatura. Arredada das famílias políticas locais, as minhas paixões eram culturais enquanto devorava os jornais e suplementos de fins-de-semana.
Recordo-me bem que o meu primeiro ato politicamente consciente me levou à Avenida da Liberdade onde me manifestei pela independência de Timor, como tantos outros portugueses. Muitos anos depois, regressaria inúmeras vezes a essa Avenida para as comemorações do 25 de Abril, as marchas pelos refugiados, as greves climáticas, a luta pelos direitos humanos, o combate contra a xenofobia e racismo e muitas outras causas.
Sei como começou a minha ligação à política. No início do período da austeridade, eu e tantos outros sentimos que podíamos dar um contributo válido em circunstâncias muito difíceis. Havia vários manifestos de esquerda a circular nessa época e o surgimento de um novo partido acabou por ser inevitável. Com a fundação do partido LIVRE, a militância partidária tornou-se uma nova experiência na minha vida que abracei de corpo e alma nos anos seguintes.
Quando a sede do partido LIVRE, em Arroios, foi ameaçada por elementos de um partido fascista, logo após a eleição de Trump, gerando alguma comoção nas redes sociais, a minha mãe desabafou comigo algo que nunca me esqueci. Contou-me que, quando o meu irmão nasceu, ficou preocupada com a possibilidade de ele desejar seguir um caminho político e o seu alívio foi imenso quando percebeu que o meu irmão não tinha essa vocação.
“Afinal a vida pregou-me uma partida e acabou por ser a minha filha mais nova a deixar-me morta de preocupação.” Foi a primeira vez que compreendi um pouco da angústia da minha mãe em crescer rodeada de homens envolvidos em política, num contexto perigoso de conflito armado e guerra. Em Lisboa, não sentimos perigo por fazer política e esse é um privilégio.
Descobri que a política me faz sentir viva e útil de uma forma que poucos compreendem. É um compromisso sério que nos esgota, destrói relações pessoais, faz-nos conhecer o melhor e o pior das pessoas, mas também nos torna mais resistentes, mais corajosos, mais temerosos do futuro, mais desejosos de contribuir para esse futuro.
Deixamos de olhar para a cidade de uma forma tão desinteressada. Passa a estar dividida em núcleos territoriais, em municípios, em seções, em freguesias, em pontos de ligação intermunicipais, em infraestruturas, mas também em bairros e comunidades.
A cidade inteira transforma-se em palco de campanha onde tem lugar um debate permanente com múltiplos manifestos sociais e políticos. É a cidade do país que mais acumula responsabilidades em determinar o quotidiano de todos os seus cidadãos e muitos ressentem os decisores que nela habitam.
Rossio e Terreiro do Paço, o eixo Avenida da Liberdade e Marquês de Pombal, Avenida Almirante Reis, Príncipe Real e Cais do Sodré. E, claro, a Assembleia da República, em São Bento. Esses são os locais prediletos da população para dar dimensão a velhas e nova causas.
É uma cidade que congrega vozes de protesto cada vez mais exigentes e interventivas, não só por parte de partidos, mas também da sociedade civil. É palco local, mas também nacional, onde ganham forma ruturas e alianças, assim como novas narrativas e visões.
Não podemos negar que há demasiado xadrez a ser jogado nos bastidores de Lisboa. Se deveria ser assim? Diria que não. Seria bom deixarmos de falar das ruas e praças de Lisboa como se o país inteiro tivesse a obrigação de conhecer essas mesmas ruas e praças.
De certa forma, é uma cidade cansada pela sua imensa responsabilidade. Esgotada talvez. A precisar de uma renovação urgente, mas essa renovação não pode ser feita sem novas pessoas comprometidas. Esta crónica não versa apenas sobre a política que se faz na cidade, mas é também sobre envolvimento político. É um apelo que mudou tudo na minha vida, que parecia destinada a uma rotina laboral e familiar, e lançou-a num oceano de imprevisibilidade, em que o mar sereno alterna com imensas ondas revoltas.
Nunca cheguei a conhecer o meu avô, que foi morto durante a guerra, no ano em que nasci, mas gosto de imaginar que iria ficar satisfeito por ver uma das suas netas a viver num país distante, tomada pela mesma inquietude que não lhe dava descanso. Já cantava José Mário Branco, Cá dentro inquietação, inquietação / É só inquietação, inquietação.

Safaa Dib
Enquanto luso-libanesa, vive entre duas culturas desde que se lembra, mas Lisboa é onde assentou o coração. Desde muito cedo ingressou no mundo da edição de livros e divulgação literária. Nunca pessoa de se restringir a uma área só, é proprietária de um estabelecimento de cozinha libanesa em Lisboa e, nos últimos anos, ingressou na atividade política, sendo dirigente do LIVRE.
Gostei de à ler. Obrigada!
Viver entre várias culturas démultiplication à riqueza cultural e, oferece uma clarividência outra!
RDC-Lyo