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O cesto repleto de coloridas vassouras piaçabas, a caixa azul de tónico capilar Juventude Alexandre e o frasco de Carunchita. Se é preciso manter a casa limpa, a cor primitiva dos cabelos e os bichos longe da madeira, o senhor José Coelho Ferreira tem a solução. Para esses e uma infinidade de outros problemas, pois nas prateleiras a abarrotar da Drogaria e Perfumaria Mavi, em Campolide, encontra-se de tudo.
Uma senhora entra no estabelecimento com passos lentos: “Bom dia, tem redes para o cabelo?”. Claro que tem, e o senhor Ferreira estica a redezinha rosa nas mãos, como quem oferece um buquê. Outra cliente apoia-se no balcão à procura de “pentes dos bichos” e o paciente dono do negócio pesca meia-dúzia deles de uma caixa. “Leve este que arranha um bocadinho menos a cabeça”, adverte.

Há quatro décadas, o comerciante tem sido a alternativa para os conhecidos vizinhos ou os estranhos que cruzam a rua General Taborda e param diante do número 31, atraídos pela miríade de produtos da caótica montra. Entretanto, por ironia do destino, o homem que passou a vida a resolver o problema dos outros agora não encontra nas prateleiras da sua drogaria a solução para o próprio problema.
“Ele foi puro e duro. Disse-me para ir para casa enquanto ainda podia ver o caminho.”
Aos 73 anos, José Ferreira já perdeu a visão do olho direito e o esquerdo avança para o mesmo fim. “Tenho o nervo ótico frágil”, resume, sobre um diagnóstico bem mais complicado e que envolve descolamentos de retina, glaucomas e cirurgias sucessivas sem resultados efetivos.
Diante do quadro, só restou ao médico prescrever a triste receita: “Ele foi puro e duro. Disse-me para ir para casa enquanto ainda podia ver o caminho”. É justamente isso que o comerciante fará, no fim de novembro, quando a Drogaria e Perfumaria Mavi encerra em definitivo as portas.
A última das drogarias de Campolide
Pelas portas ainda abertas da drogaria entra uma mulher, a caminhar com dificuldade, apoiada numa bengala. “Quer ajuda, minha senhora”, pergunta José Ferreira, solícito. “Só estou a ver”, responde a cliente. “Pois veja, está cá a sua cadeirinha…”, convida o comerciante, oferecendo um assento para que aliviasse a pressão nas pernas.
A notícia foi avançada pela Junta de Freguesia de Campolide nas suas redes sociais. “O senhor José ficou tão bonito no Facebook”, elogia uma jovem, em busca de água-lavanda Puig. A senhora que havia entrado apenas para uma vista de olhos, parece desolada. “Mas isso tudo é tão triste”, comenta, entre suspiros. “Havia no bairro quatro drogarias. E agora, zero”, concorda a mais jovem, recebendo o frasco de colónia num saco.
José Ferreira apenas escuta o diálogo entre as duas clientes, em silêncio.
A mudança de realidade, na opinião dele, é fruto da concorrência desleal dos centros comerciais, do paulatino desmantelamento do comércio de rua, da avalancha de lojas chinesas e, principalmente, da memória dos portugueses, esquecidos das tradicionais drogarias. “Perdi as contas de pessoas que entram e se espantam, a dizer: mas o senhor tem isso e aquilo. Pois, tenho”, conta.
“Perdi as contas de pessoas que entram e se espantam, a dizer: mas o senhor tem isso e aquilo. Pois, tenho.”
A entrevista é interrompida pela chegada de um esbaforido rapaz. “Tem puxador de portas?”, pergunta. José Ferreira responde negativamente, mas indica uma loja de ferragens mais à frente. “Somos uma espécie de memória do bairro”, continua o comerciante. “Às vezes, ligam-me apenas para saber onde podem comprar as coisas e eu, que não sei de tudo, mas sei um bocadinho, dou a informação”, explica.

O post da Junta de Freguesia não era apenas um anúncio de despedida, mas escondia um apelo. Diante do inexorável fechar de portas, o comerciante tem de vender os produtos da drogaria, sob o risco de ser obrigado a comprar o estoque no fim do período. “É cruel, mas será preciso vender o que restar de tudo isso a mim mesmo para pagar os impostos ao Estado”, diz.
Assim, apesar da visão que o abandona lentamente, passa as manhãs a escrever em folhas de papel os preços dos produtos em descontos, fixando em seguida os papelotes nos pavios de vela, nas latas de petróleo para o candeeiro e de solda cáustica, nas embalagens de tinta para a roupa e da velha pasta dentifrícia Couto, e nas caixas de pedra hemostática 444 para usar após o barbear.
Sabe que, na maioria deles, terá prejuízo, mas pelo menos livra-se do valor dos impostos. “Tem bichas para a casa de banho?”, pergunta um cliente que acabou de entrar e o senhor Ferreira aponta para as mangueiras de chuveiros enroladas como serpentes prateadas. “Tem e ainda estão em promoção”, ressalta.
Reforma forçada e jardinagem
Mesmo urgente em livrar-se do estoque, José Ferreira não se pode dar ao luxo de passar o dia todo com a drogaria aberta. A redução da clientela transformou o antigo negócio familiar, onde atendia ao lado da esposa e dos dois filhos, num trabalho individual. “Há 20 anos, éramos quatro e não dava. Hoje, sou só eu e sobra”, resume.
A visão a falhar obriga o comerciante a encerrar o expediente mais cedo, a fim de poder caminhar lentamente e ainda com luz natural pelas ruas de Campolide, para ir ao banco, ao contabilista ou não perder o comboio das 17h22 para a Margem Sul. É lá, em Brejo de Azeitão, que o antigo caixeiro viajante e futuro ex-dono de uma drogaria vai passar os próximos anos, ao lado da esposa.
“Morre a drogaria, mas antes a drogaria que o dono.”
Os planos para a reforma já estão traçados, não por ele, mas por ela. “Sou o empregado da minha mulher nos fins-de-semana e, agora, serei em tempo inteiro”, diz, bem-humorado, sobre os dias de jardinagem que o esperam.
Do telemóvel, José Ferreira exibe centenas coloridas fotografias de adálias, cristas de galo, hibiscos, gladíolos, eucaliptos de jardim, papa-moscas e uma infinidade de flores que o aguardam para serem aparadas e regadas durante a reforma.
Parece feliz com o cenário que o aguarda, mas não esconde uma certa melancolia com a forma como se deu. “Esperava estar aqui na drogaria até os 80”, diz, contrariando o conhecido adágio que garante sobre o que olhos não veem, o coração não sente.
“Pois o meu coração está apertado, dia a dia, mais apertado”, revela, a tentar manter, mesmo assim, uma ponta de otimismo. “Morre a drogaria, mas antes a drogaria que o dono.”

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Muito bom. Parabéns pela reportagem.
Muito obrigada, em meu nome pessoal e do meu pai (José Coelho Ferreira).
Adorei a reportagem e assim vai a minha querida Lisboa, infelizmente em C. Ourique também já desapareceram tantas das minhas memórias, obrigada
A saúde prega-nos cada partida. O Sr. José, comerciante doutra época. Educado, prestável com todos. A SUA loja era um mundo de surpresas. Era preciso comprar uma prenda de anos? o Sr. José tem, uma grelha para assar uns carapaus,
um reposteiro de tiras para pôr na porta para não entrar moscas. Os clientes,os fregueses também eram do Bairro da Liberdade ou Sarafina. Sr. José daqui vai um grande abraço, de um antigo cliente.
Errata:::: não é Sarafina, mas sim Serafina.
Muito obrigado!
Estou muito sensibilizado pela reportagem e pelos comentários. Bem hajam!
OBRIGADO Sr Ze (como sempre o chamei)
Ainda me lembro da oferta que me fez quando fui Mãe pela 1 x (há 35 anos) 1 conjunto de cremes p bebé
O que fez pela minha Avó…
Nunca o vou esquecer
Até sempre😘
Em Alvalade, o Sr. Manuel Pires, também tinha de tudo, e se não tinha na altura, arranjava para a semana… Uma Lisboa “familiar”, que vai encerrando pouco a pouco.
Fiquei muito sensibilizada com esta reportagem! Lamento muito pelo Sr José, pelos seus clientes e pela belíssima drogaria! Não moro em Campo de Ourique, sou uma Alfacinha da Baixa, moro no centro, mas ia aí às vezes e cheguei a comprar uma vassourinha para oferecer a uma sobrinha e águas de colónia e sabonetes que ainda ofereci à minha saudosa mãe! Eram tantas as drogarias em Lisboa! Tenho tanta pena de as ver desaparecer, aqui na Baixa já só há uma e não tem tudo como a do Sr. José Ferreira! São as nossas memórias que se perdem! Qualquer dia só veremos esses bons produtos, nossos, de qualidade, nas lojas da “Vida Portuguesa” a preços proibitivos, ou em lojas “chapa gourmet” para atrair turistas e saloios! Espero que o Sr José possa tranquilamente partir para a sua reforma e que o estoque seja todo comprado pelos seus clientes e lisboetas e por todos que amam está nossa Lisboa Histórica que aos poucos nos vai deixando uma saudade incomensurável! Vou passar aí na próxima 6f e vou comprar umas “peças” de afetos para que a memória d sua loja perdure para além do tempo, de todos nós… bem haja! Ana Mascarenhas
Excelente trabalho sobre …
Comércio(s) que, ainda, vende(m) o que as pessoas, ainda, precisam!