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A processar…
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Aos domingos, antes de o iPhone tocar para a meditação, a Frederica salta da cama, testa a flexibilidade, toca com os dedos no chão, e sai para a rua em traje de treino com o sumo multivitamínico a correr no esófago.

Da casa em frente, com uma assoalhada a mais do que a nossa e um salão de jogos na cave, sai a amiga da Frederica em traje de treino e com o batido proteico, substituto alimentar, a chegar ao estômago.

Partilham a Volvo, arrancam do Restelo, estacionam no Chiado, e fazem quarenta e cinco minutos de ginástica passiva. A contradição lexical consiste em estar deitado dentro de um fato de astronauta com elétrodos colados aos glúteos e ler a Vip.

Quando a Frederica não troca a rua e estaciona a Volvo em frente a uma casa com uma assoalhada a menos do que a nossa e sem claraboia na entrada, regressa ao Restelo pela hora em que termino de ler as atualizações dos grupos do Whatsapp.

A Frederica veste as calças de napa e a parka Burberry, eu visto as calças de veludo cotelê e a parka Burberry, a Frederica muda os pertences da mala Carolina Herrera da ginástica passiva para a Louis Vuitton a tiracolo que comprou nos leilões do Ebay, eu ponho o auricular num bolso e os cigarros eletrónicos no outro, tiramos o Tomás, o Vicente e o Rodrigo da frente da PS5 e abotoamos-lhes as parkas da Burberry, damos-lhe os iPhones para a mão, saímos na Volvo ao mesmo tempo que a amiga da Frederica, o marido e os três filhos, passamos pelo quiosque do senhor Amianto para comprar o Expresso e a Vogue, e estacionamos em segunda fila em frente da ‘Pastelaria do Restelo – O Careca’, ao lado de uma outra carrinha Volvo de sete lugares.

Todos os automóveis estacionados na rua são carrinhas Volvo compradas por uma pechincha à empresa depois de terminados os leasings, todos têm sete lugares, todos têm três cadeirinhas de criança nos bancos traseiros, todos têm variante 4X4 por causa dos fins-de-semana na Comporta, todos têm matrículas recentes – sem tracinhos – todos têm internet a bordo, opção híbrido, para afagar a responsabilidade ambiental, todos têm estofos em pele, aplicações de madeira escura, cruise-control, sensores de estacionamento, jantes em liga leve, porta-copos nos bancos traseiros e barras de tejadilho, todos trouxeram o Expresso e a Vogue, o iPhone sincronizado, Vicentes, Rodrigos e Tomás, e todos transportam famílias que moram no Restelo

(Fora aqueles que dizem que moram em Belém e vivem no ex-bairro social do Caramão da Ajuda ou os que se gabam de ter comprado casa no Restelo, mas têm um T1 no Bairro da Serafina)

e todos se sentam à mesa, na pastelaria, de forma idêntica à nossa: o Vicente, o Rodrigo e o Tomás junto à Frederica que lhes fala com modos.

‘O menino, hoje, só come um palmier porque já é quase hora do almoço de Domingo e depois perde o apetite’

(Como se o apetite fosse coisa que se perdesse e nunca mais se tivesse de volta)

E eu dou por mim junto dos outros pais, recorrendo a comportamentos territoriais, na disputa do último tabuleiro de doçaria e quando regresso à mesa em equilíbrio trapezista de copos, sumos e pires, engano-me e tendo a confundir o meu Vicente, o meu Rodrigo e o meu Tomás com o Vicente, o Rodrigo e o Tomás da mesa ao lado.

Por isso, acontece-me passar horas a planear umas férias à neve em família, entre dentadas no croissant, com uma Francisca ou uma Carminho e só dar pela troca quando me dizem, envergonhadas, que as casas delas têm sebe de arbustos ou um minigolfe no relvado e reclamam a falta de banheira de hidromassagens.

Esta semana a minha mulher chama-se Maria Helena e a minha filha mais velha Condeixa, tenho uma moradia com salão de jogos e vista de Tejo, uma empregada ucraniana que diz ‘sinhô doutô’, passo os fins-de-semana prolongados na casa dos meus sogros na Praia Verde e estou em vias de entrar como sócio do escritório de advogados. Já me divorciei duas vezes. Como todas alegaram em tribunal ‘manutenção de estilo de vida’ e pago pensões de alimento avultadas, não voltei à ‘Pastelaria do Restelo – O Careca’.

Caso contrário, somaria nova separação e trocaria a Volvo por um Opel Corsa, os tacos de golfe do Belas Clube de Campo pelo bilhar do Café Central de Benfica, onde vindimaria beatas ao ritmo do vinho tinto, passearia no Colombo ao domingo, ia de férias para o parque de campismo de Melides, faria horas extraordinárias nas obras da CRIL e começaria a pagar as prestações de um apartamento em Rio de Mouro, que dividiria com a Sandra Cristina e o meu Pedro Tiago.     

* Texto inspirado na grandiosa crónica ‘Os meus Domingos’ de António Lobo Antunes, numa versão upper class.


Filipa Martins

É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.

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