Havia um amor estragado no meu prédio. Quando os vi juntos, soube que aquilo não podia durar muito. Ele era mais novo, ela melhor. Como não viram isto nem eu sei, mas espantei-me com os gestos que ela lhe metia de graça à frente. Subia as escadas do prédio às onze da noite e toda ela era sedução e romantismo.

Em vez de um Dom Perignon, levava-lhe um pacote de Chocapics, sabendo que amor é o que há numa caixa de cereais de chocolate. Da parte dele, nada a fazer: era impossível resistir a alguém assim.

Nunca lhe fugiu a mão para os Golden Grahams, nunca cometeu o erro de comprar Nesquick. Sem outro remédio, eu, míope sempre em busca da beleza, de roubar a vida aos dias, também me apaixonei pela namorada do vizinho.

Quando nos cruzávamos nas escadas ou nos víamos varanda a varanda, ela dizia-me boa noite ou nem sequer reparava em mim. De séculos de literatura à vida, tem sido esse o trágico destino das paixões camilianas, e eu por ela camiliei e quando acabei de camiliar camiliei um pouco mais. Camiliaria tudo o que a vida fosse.

O meu tormento durou três longos meses, a minha esperança míseras doze semanas. De manhã à noite, eu tinha de ouvi-los. Ele tinha uns 30 e muitos, ela uns 40 e poucos, mas parecia que não trabalhavam nem dormiam. Ele testava jogos de computadores para miúdos, ela traduzia manuais de retroescavadoras, eram gente sem horários. Sobre ela, era claro que viria a dizer-se o óbvio ao ver-se a figura do rapaz: “Tu deixas mato a arder por onde passas.”

E assim foi. Ela começou a vir menos, ele começou a parecer mais enervado. Em vez de ter o seu amor em casa às duas da manhã, ia correr, gastar o corpo, e eu via-o da janela como quem vê o apocalipse.

Quando ela deixou de aparecer de vez, já não havia escape nos músculos, era o coração que estava estragado, e Alvalade deixou de ter tamanho para uma dor assim. Vi-o dar passeios dramáticos de madrugada, beber uma cerveja inteira, ele, que era abstémio como eu. Vi-o ter de fugir de Lisboa para não encarar o chão dos passos dela.

Antes disso, bateu-me à porta. Antes de ela aparecer, conversávamos tanto, íamos tantas vezes sacar um McRoyal Bacon, e um dia até pedimos um McVeggie, só no gozo. Vivemos muito. Nessa altura, ele ainda não tinha olheiras e tinha a decência de fazer a barba antes de me bater à porta. Disse-me então:

– Já deves ter reparado que a Mónica já não costuma vir cá. Vou fazer uma viagem aos Açores para limpar a cabeça. Posso pedir-te um favor?

Desde que não fosse passar a ferro a roupa interior que ela lá pudesse ter deixado, não podia dizer que não.

– Fica com a minha chave e rega-me só as plantas. A orquídea podes deixar morrer à fome.

Sim, eu vira-a subir um dia as escadas de orquídea na mão. E sim, levava na mesma um saco do supermercado com cereais de chocolate. Parecia ter atenção às coisas, só nunca levou leite. Dentro de casa, ele devia regar-lhe a planta com o cuidado extremo que se dá a um amor bebé. Na casa ao lado, eu regava o coração a gasolina e ardia de ciúmes.

Ela matara-lhe o amor total de juventude, ele tinha de lhe matar o gesto à força. Humilhado, deixava secar uma flor como quem não quer saber ou deixava que secasse como ele já estava seco.

Pior do que isto: eu, que estava sossegada na minha vida, metida na casa ao lado, a ver isto sem me meter na história deles, a imaginar que ela talvez tivesse decorado peças inteiras do Beckett, fosse especialista em Garrett, amasse o Barnes, falasse francês melhor do que o Balzac, e se calhar até estava enganada e ela era apenas uma miúda gira a subir três andares de vestido e salto alto e a minha cabeça é que, enfim, tinha ideias estúpidas que a literatura lá meteu, estragando-me para a vida normal com gente normal e ideias normais para sempre, é que tive de matar o raio da planta.

Coitado, nunca o vi mais infeliz do que depois de chegar do aeroporto. Voltou, pegou no vaso com terra seca que eu não tive a decência de fazer desaparecer e deitou-o ao lixo. Meses depois, começou a tocar piano, e a coisa nunca subia de Tim Buckley. Deprimia madrugada dentro e eu nunca ousei perguntar por ela. Onde estaria, por que o deixara, onde vivia, com quem estava? Ainda se lembrava de mim?

Queria saber dela, tanto por ele como por mim. Se, por um lado, podia dar-me esperança que ela já não quisesse o meu vizinho, por outro já não tinha como a ver, como levantar-me de alegria ao ver os gestos que o amor contém. Nada de pretensões, magia era o dia-a-dia a fazer-se das coisas que podiam unir alguém. E sempre quis saber o que se passa com uma história depois de morta e enterrada.

Há uns tempos, pensei em lutar pela vida, procurá-la, ver se acendia entre nós uma centelha, dar-lhe a entender que também escolho os Chocapics, que cuidaria dela como do seu jardim e que até poria rosas no chão do prédio para que ela chegasse com o seu passo sagrado. E, por ela, enfrentaria o rés-do-chão nas reuniões do condomínio.

Nessa busca, soube que morreu de covid há mais de um ano. O meu ex-vizinho, que não vi mais, que se mudou, que já não actualiza o Facebook, já deve ter sabido e já deve ter chorado agarrado à almofada, e viverá o resto da vida como rejeitado. Teve-a, mas a rejeição durou mais tempo. Eu encaro a vida sem alguma vez ter levado com o seu sorriso torto, mas pelo menos nunca lhe levei com os pés.

Quanto a ele, está lixado. Qualquer namorada que venha a ter ficará abaixo dela: nunca ninguém ganha a um fantasma, não se rivaliza com um morto.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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2 Comentários

  1. Ana
    Nem sei por onde começar. Não é critica nem é por mal, mas jamais lhe diria, como a Rosa, “Gostei muito. Escreve muito bem”.
    Se escreve bem ou mal, sou incompetente para tal análise.
    O que sei é que conseguiu meter o trio de personagens dentro de mim. Sofri com eles e por eles. Com o triste final da jovem e o mais triste final do jovem. Não concorda? Paciência…
    Acho, com a máxima franqueza, que para sofreres daqueles, mais vale morrer do que viver a penar, num círculo vicioso de auto destruição, o qual não mata mas destrói. Para estes a morte é o alívio, a salvação…
    Agora passo ao ataque da 3ª e dupla personagem, que narra mas que se envolve, que também sofre e que, pior e imperdoável, não tem um pingo de piedade para com o desgraçado, ao qual, creio, bastava um olhar, uma palavra, uma mão no ombro para o salvar do naufrágio. Não se faz o que não fez!
    Mas, o mais importante que aqui quero deixar registado é uma dúvida complicada que merece uma resposta simples. Em todo o seu texto só revela o género do narrador numa única frase:
    “eu, que estava sossegada na minha vida”
    E é aqui que me sobressalto e suspeito que descobri que nunca poderia dar uma tábua de salvação ao desgraçado. Lá bem no fundo, de boa vontade queria era que ele desaparecesse para ter a via aberta para nunca mais precisar de camiliar…
    E agora? O que virá a seguir? Estou ansioso por novos episódios da vida de uma narradora tão pitoresca.

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