A minha professora de Português na escola secundária, em Carnide, costumava dizer-nos, quando nos sentia preguiçosos e indolentes, para não sermos umas “bestas sadias, cadáveres adiados que procriam”. Imaginem a estranheza do conselho para uns adolescentes. Ríamo-nos, incertos do significado, como nos riríamos de tudo o que envolvesse referências laterais a “procriação” ou professores a dizer “não sejam umas bestas”.
Era a idade.
Foi com essa professora que meses mais tarde estudámos “Mensagem”, do Pessoa, e que percebemos finalmente de onde vinha a recomendação. Lemos o poema “D. Sebastião, Rei de Portugal”, que começa com os versos “Louco, sim, louco porque quis grandeza / Qual a Sorte a não dá”. Essa grandeza, já sabemos, era a de ir conquistar povos estrangeiros e espalhar a fé católica pela força das armas. Tinha 14 anos quando foi coroado, e hoje em dia nem pela idade lhe perdoaríamos tamanha loucura.
Como sabemos, correu mal, e ali ficou, de corpo estendido no areal africano, mas eternamente presente neste misto de esperança e loucura a que chamámos sebastianismo.
Termina assim esse poema da Mensagem: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”.
Aprendemos então o que a professora nos queria ensinar: que fossemos além daquilo que os outros esperam de nós, que arriscássemos, que fizéssemos. Cadáveres adiados que procriam, aqueles que desperdiçam a vida à espera da morte.
Foi assim que eu cheguei à Mensagem: com os olhos do presente, pronto a encontrar naquela poesia antiga valiosas lições para o futuro, mais do que memórias de um passado morto.
A inspiração patriótica e imperialista da obra – feita à medida para um concurso do Estado Novo -, os apelos ao divino, as saudades de um ideal passado, sempre me disseram muito pouco. Era o que eu interpretava no que lia sobre a vida que me agarrava à obra. Até hoje.
No verso “O homem e a hora são um só” (D. João) li que somos apenas o que fazemos no momento da verdade. E que esse momento da verdade chega sempre: “Não sei a hora, mas sei que há a hora” (“A Última Nau”). Com o verso “Todo o começo é involuntário” (O Conde D. Henrique) preparei-me para abraçar a aleatoriedade da vida e de como esta se ri dos nossos planos.
O poema “Horizonte” incentivou-me a descobrir quem mora para lá do desconhecido, com promessas de beleza e conhecimento: “O sonho é ver as formas invisíveis / Da distância imprecisa, e, com sensíveis / Movimentos da esperança e da vontade, / Buscar na linha fria do horizonte / A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte — / Os beijos merecidos da Verdade.” Venho desde então tentando encarar sempre o Outro e o Estranho com essa curiosidade de quem descobre novos mundos.
Aprendi que “Dobrado o Assombro / O mar é o mesmo: já ninguém o tema” (“Epitáfio de Bartolomeu Dias”). Que do lado de lá do medo não existe mais medo, pelo que há que o atravessar.
Soube com o “Quinto Império”, antes de ter idade para o saber, que “ser descontente é ser homem”, e que esse descontentamento é afinal desassossego, e não infelicidade, e nos põe ao caminho. Desculpo a minha perene insatisfação por viver em busca de um “porto sempre por achar” (“Padrão”). É essa meta inatingível que persigo e que “num erguer de asa / faz até mais rubra a brasa / da lareira a abandonar!” (“Quinto Império”). E por isso parto tantas vezes, mas sempre com saudades de casa.
Tenho um problema em dizer que não: vejo propósito e excitação em tanta coisa. Também aqui culpo o “Mar Português”, que me convenceu que “Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”. Devia, claro, ter tomado mais atenção aos versos seguintes: “Quem quer passar além do Bojador / tem de passar além da dor”. O sonho e o sacrifício andam tantas vezes de mãos dadas.
Sei que a “Mensagem” é, na memória de tantos, um aborrecimento obrigatório dos tempos da escola. Para outras pessoas, é uma tentativa dispensável de revisitar uma noção de glória de um passado também feito de dor e sofrimento. Percebo ambos. Esta obra arrasta consigo um passado pesado, um contexto preciso e múltiplas camadas, apelos, símbolos e interpretações.
Eu também os vejo. Eu também os julgo e analiso criticamente. E, no final, retiro desta obra apenas aquilo de que preciso, aquilo que me faz falta, o que, como viram, é suficiente para ser muito. E deixo o resto, sem o esquecer ou ignorar.
Por isso, quando “A Brasileira do Chiado” me convidou para coordenar uma reedição comemorativa da “Mensagem”, em várias línguas, para celebrar o poeta que noite e dia lhes ocupa a esplanada, só pude dizer que sim. Honra-me poder alargar as fronteiras de uma obra de um poeta universal, mas que está traduzida em menos de uma dúzia de línguas estrangeiras.
Queremos muito fazê-lo bem: falei e aprendi com quem generosamente se dispôs a ouvir-me, com a Casa Fernando Pessoa, com reconhecidos pessoanos, estudiosos e admiradores da obra. Convidámos o Professor Luiz Fagundes Duarte, responsável pela primeira edição crítica da “Mensagem”, publicada pelo INCM, para escrever o Prefácio e introduzir aos estrangeiros uma obra que carece de contexto histórico e simbólico.
Falámos com editoras estrangeiras que publicaram Pessoa lá fora e trouxemos para Portugal a tradução francesa de Bernard Sesé, professor, ensaísta, tradutor e poeta, publicada pela primeira vez em 1989, pela quase centenária editora José Corti. E a tradução espanhola de Jesús Muñarriz, poeta, editor e tradutor, que me recebeu de braços abertos na sua Ediciones Hipérion, em Madrid. Ou a tradução para língua chinesa feita pelo Dr. Jin Guo Ping e publicada em 1986 pelo Instituto Cultural de Macau.
Estão cinco à venda n’A Brasileira, em belas edições, daquelas feitas para guardar: a portuguesa, na versão publicada pelo INCM, e as bilingues, francesa, inglesa, espanhola e chinesa. Queremos alargar este leque às outras traduções existentes, mas queremos sobretudo incentivar novas traduções da “Mensagem”, em outras línguas que se ouvem pelas ruas de Lisboa, que unem comunidades pelos nossos bairros. O árabe, o hindi e o hebraico são apenas alguns exemplos que gostávamos de tornar reais, em conjunto com as comunidades dessas línguas.
É um caminho que começámos sem pressa e ao qual se pode juntar quem partilhar connosco esta ambição de ver Pessoa, que é vários dos nossos grandes poetas, a renascer noutras línguas a partir do lugar onde criou tantos, e tão marcantes, poemas portugueses.

João Marecos
Chegou a Lisboa no preciso segundo em que chegou ao mundo. Aqui cresceu, fez amigos, estudou Direito, tornou-se advogado, antes de a curiosidade o levar para Nova Iorque, onde repetiu tudo isso. Escreveu um livro, que apresentou no Chiado. Fundou o 100 Oportunidades à beira do Tejo. É o amor que o mantém fora de Lisboa, será o amor a fazê-lo voltar.
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