Os passos apressados rumo ao trabalho ou ao peso ideal. Independentemente do objetivo, para a maioria dos peões que circula pelo Campo Grande os cálculos são simples: os minutos até o próximo compromisso ou os quilos a perder para se estar em forma. O que poucos percebem é que o parque esconde outros segredos da matemática.

A reforma que se estendeu por seis anos, entre 2012 e 2018, e envolveu as alas norte e sul do parque separadas pela Avenida Brasil, em Alvalade, espalhou pelos 11 hectares do rebatizado Jardim Mário Soares equipamentos dedicados a uma disciplina que, para muitos, não combina com a natureza ou momentos de lazer: a matemática.

O professor Pedro Freitas foi um de entre outros docentes da Sociedade Portuguesa de Matemática que se juntaram aos arquitetos responsáveis pela reforma dos jardins do Campo Grande para criarem uma atmosfera harmónica entre uma disciplina, aparentemente sem ligação aos momentos de lazer que um parque sugere.

O resultado desta complicada equação, entretanto, é positivo.

Pedro Freitas compôs a equipa da Sociedade Portuguesa de Matemática que elaborou os equipamentos instalados no novo Campo Grande.

“Galileu dizia que Deus criou o mundo utilizando a matemática”, lembra Pedro Freitas, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, um dos integrantes do grupo responsável em seguir o axioma do antigo astrónomo e físico italiano, e provar que o conhecimento matemático não é estático e, assim como a Terra, eppur si muove.

Sentar-se na companhia de jogos matemáticos

Doutorado nos Estados Unidos, Pedro Freitas formou-se na mesma faculdade onde hoje ensina, no Departamento de História e Filosofia das Ciências. Antes, foi professor do curso de História da Matemática Recreativa na instituição, responsável pela temida disciplina de álgebra. Um pesadelo para os alunos? O docente garante que não.

“Essa ideia de que a matemática é uma coisa difícil e aborrecida tem diminuído, muito por causa de ações como esta, que apresentam o assunto de uma forma apelativa”, diz, rumo à primeira das cinco paragens do tour pelo Campo Grande. “As pessoas têm percebido que pensar é um prazer e a matemática é isto, o prazer de pensar.”

O percurso sugerido por Pedro Freitas inicia-se na ala norte do parque, entre os campos de ténis e a McDonald’s. Na interseção entre a perda e o ganho de calorias encontra-se um conjunto de quatro bancos de cimento, aparentemente dispostos para que as pessoas se sentem para relaxar e contemplar o movimento.

“Os bancos são dedicados aos jogos abstratos”, diz, apontando para a sequência de tabuleiros em metal fixados sobre o betão. “Em cada banco, há dois tabuleiros com jogos menos conhecidos, alguns medievais, outros contemporâneos. A ideia é que as pessoas se sentem e usem as pedras do chão para jogá-los”, explica.

“A ideia é que as pessoas se sentem e usem as pedras do chão para jogar.”

Pedro Freitas

Para isto, ao lado dos tabuleiros há uma outra placa metálica, explicando as regras de cada jogo. Entre eles, encontra-se o medieval Alquerque e o contemporâneo Hex, ou ainda, o Mancala, oriundo da África, considerado o mais antigo do mundo. Há também o conhecido Moinho, bastante popular entre portugueses e brasileiros.

“Diferente dos jogos de cartas ou dados, os abstratos dispensam a intervenção da sorte. Privilegiam o raciocínio e é preciso desenvolver uma estratégia para ganhar. São da família das dama e do xadrez”, explica o professor, sem desmerecer as vertentes lúdicas da sorte. “Essas contribuíram na teoria das probabilidades”, destaca.

Espreitar a matemática através de um furo

Ainda no lado norte do Campo Grande, em frente ao lago onde famílias e adolescentes remam em barquinhos na companhia dos patos, está o Quarto de Ames, a segunda paragem do percurso. Aparentemente, um imenso cubo de cimento, com o chão e as paredes axadrezadas, vandalizadas com grafites na parte interna e externa.

A representação do Quarto de Arnes que, sem a devida indicação tem sido vandalizada e vem sendo utilizada como casa de banho.

“Infelizmente, tem sido usado como casa de banho”, diz o professor, diante do forte odor característico, percebido ainda antes de se entrar no espaço. “Falta uma placa que explique a experiência”, sinaliza Pedro, uma crítica já feita em frente aos bancos com os jogos abstratos, repetida agora e também nas futuras paragens.

Uma pena, pois o Quarto de Ames tem o potencial de ser a mais apelativa das experiências do parque. O espaço recebeu o nome do norte-americano Albert Ames Junior, estudioso de ótica. Em resumo, ao olhar-se uma outra pessoa através de um furo na parede, têm-se a impressão de que essa aumenta e diminui de tamanho.

Pedro Freitas ilustra o funcionamento da ilusão de ótica, que ainda funciona, apesar dos grafites.

Em nome da ciência, Pedro Freitas enfrentou o forte odor e entrou no Quarto de Ames para demonstrar a experiência. Diante da parede axadrezada, situou-se primeiro no lado direito, caminhando em direção ao esquerdo, enquanto do furo, como um matemático voyeur, era possível perceber a sua figura diminuir de proporção.

“O Quarto de Ames é um exemplo de uma ilusão de ótica. As linhas axadrezadas no chão e na parede fazem o olho pensar que a pessoa está perto ou longe”, diz o professor das disciplinas de História da Matemática e Matemática Recreativa da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

O enigma das sete pontes

A terceira paragem do tour é já no lado sul, no lago diante de um ginásio. Ao fundo, vê-se a enorme escultura em pedra de uma volumosa mulher despida, com um peito generoso feito fonte, de onde costuma jorrar água. Na extremidade oposta, observada pela escultura de Mário Soares, está o conjunto das Sete Pontes de Könisberg.

Conjunto de pontes sobre o lago representa a arquitetura da cidade de Könisberg e do enigma matemático resolvido por Euler.

Könisberg ou Conisberga, em português, uma província cuja situação geográfica é por si só uma equação: o território, hoje na fronteira da Rússia com a Ucrânia, já pertenceu à Polónia e ao Império Alemão. Foi neste período que o matemático suíço Leonhard Paul Euler resolveu o desafio envolvendo as pontes da cidade.

“O traçado copia a arquitetura local. Havia um rio e umas ilhas no mesmo, ligadas pelas pontes. O desafio era fazer um passeio por Könisberg atravessando todas as pontes, mas sem cruzar mais de uma vez por uma delas”, explica Pedro Freitas. “Esse enigma ilustra um sistema matemático chamado de Teoria do Grafo.”

As Sete Pontes de Könisberg são um exemplo matemático da Teoria dos Grafos.

Para o professor, a solução do desafio foi possível porque Euler pensou o problema de forma matemática. “Não levou em conta as distâncias ou água, por exemplo, mas que cada ponte era uma linha ligada a um ou mais pontos”, explica. “Exatamente como nós fazemos ao consultar o mapa do metro, que também é uma espécie de grafo.”

O problema homenageado na ponte sobre o lago do Campo Grande também não tem indicações e muitos dos que passam pelo parque não desconfiam que a curiosa estrutura de madeira exigiu um esforço de um dos mais famosos matemáticos da história para concluir que – com o perdão do spoiler – é impossível executar o desafio.

A Loxodrómica: curiosa até no nome

Do alto do pedestal, o busto de Mário Soares talvez esteja entre os que não se tenham apercebido do enigma das Sete Pontes de Könisberg, bem à sua frente. Não é um privilégio dele. Afinal, diz Pedro Freitas, embora a matemática seja um excelente exercício para desenvolver a lógica, os políticos preferem outra ferramenta: a filosofia.

O busto de Mário Soares, que batiza o “novo” Campo Grande, após a recente reforma.

Pelo menos, a maioria deles. “Napoleão tinha interesse em matemática”, ensina o professor. A admiração pela ciência levou o estratega francês, entre uma batalha e outra, a desenvolver o seu próprio teorema, em 1787. Mas foi mesmo uma descoberta relevante ou os matemáticos da época não ousaram contrariar o imperador?

“O Teorema de Napoleão foi validado matematicamente”, garante Pedro Freitas, sobre a descoberta envolvendo triângulos equiláteros. A admiração pelos números, entretanto, não ajudou Bonaparte na sua mais famosa batalha, em Waterloo, quando decidiu enfrentar um exército com quase o tripo de homens que o seu e perdeu.

A quarta paragem é mais à frente, na representação de um método desenvolvido por Pedro Nunes, considerado o maior matemático português, isso bem antes de Napoleão. A despeito do curioso nome de medicamento, a Loxodrómica é uma curva que ajuda a representar na superfície plana de um mapa o formato esférico da Terra.

A Curva Loxodrómica, criação do maior matemático português, Pedro Nunes, capaz de transpor para um mapa as orientações de uma esfera.

“Se traçarmos um meridiano sobre a esfera, o ângulo entre a curva e os meridianos é constante. Foi uma descoberta importante pois, a partir daí, o navegador sabia que bastava colocar o leme com o ângulo fixo em relação ao Norte para navegar sempre pela mesma linha”, explica o professor.

Um trabalho crucial desenvolvido em pleno período das Grandes Navegações, mas que, novamente sem uma placa descritiva, a enorme bola de aço acaba por confundir-se com as esculturas do parque. “Apesar disso, é bastante popular e alguns alunos chegaram a trepá-la e a tirarem fotografias ao lado da esfera”, conta.

Uma viagem no tempo pela matemática

A última parte do percurso inicia-se quase na praça de Entrecampos, um passeio pelo tempo através de placas dispostas na calçada, contando a história da matemática através dos anos. Uma espécie de corredor da fama dos números, que se inicia na Babilónia, dois mil anos antes de Cristo, e termina no início deste século.

As placas foram fixadas no passeio e homenageiam nomes de matemáticos e de descobertas que figuram nos livros do secundário.

“Mereceram uma placa aqueles matemáticos que figuram nos livros de história e deram uma contribuição científica. Nomes de pessoas ou de sistemas reconhecidos pelos alunos do secundário, o que facilita a identificação de quem caminha pelo passeio”, explica Pedro Freitas.

Uma das placas lembra o estudo dos indianos sobre o infinito, o que levou o professor a falar de outra contribuição hindu: a criação do zero. “Há várias formas de se representar os números, inclusive com letras, como faziam os romanos. Outras civilizações usavam um sistema posicional, como os chineses e indianos”, conta.

“Faz todo sentido que a matemática esteja num local de lazer, como um parque.”

Pedro Freitas

No sistema posicional, o numeral “1” pode representar um, dez, cem ou mil. “Para isso, é preciso que outro símbolo, sem um valor definido, ocupe o seu lugar. Essa é função do zero”, explica. A viagem do zero até a Europa esteve a cargo dos árabes, que haviam invadido a Ásia. “Por isso, até hoje chamamos o sistema de hindu-arábico.”

Pedro Freitas conta ainda que a timeline no passeio do Campo Grande demonstra o uso da matemática tanto para questões práticas, como a astronomia e a agrimensão dos terrenos, mas também como mera diversão. “Ou seja, faz todo sentido que a matemática esteja num local de lazer, como um parque”, acredita.

Mesmo que a menção ao zero em matemática não traga boas lembranças para alguns.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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4 Comentários

  1. Fiquei maravilhada com este artigo. Começando pela surpresa de haver matemática, jogos e enigmas de lógica no jardim onde caminho diariamente. Pela qualidade da escrita. E pelo prazer de ler os vossos artigos. Muito obrigada “vizinhos”!

  2. Sem a Matematica não teríamos a poesia, a música, a dança nem tantas outras formas de comunicação. Obrigado MATEMATICA

  3. Adorei ler o artigo e fiquei “em pulgas” para fazer essa passeata pelo jardim do Campo Grande para observar o que eu desconhecia. Agradeço a partilha.

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