Mirna Queiroz gira o descafeinado que tem nas mãos e, naquela fração de segundos, o gesto banal de arrefecer a bebida resume uma vida. Girar o mundo com a leveza de quem gira uma chávena tem sido a rotina da jornalista e produtora cultural luso-brasileira, 52 anos, a maioria a transitar por cidades, países, continentes e culturas diferentes: São Paulo, Lisboa, Bruxelas, Singapura, São Tome, Florença, Nova Iorque, Boston, Canterbury e, agora, novamente Lisboa. A necessidade de sorver o mundo, a curiosidade de saber os gostos contidos nesta imensa chávena que ele também é.

Na última década, independentemente se na metrópole São Paulo ou na medieval Canterbury, o nome de Mirna tem estado associado ao da Revista Pessoa, uma publicação literária digital, cujo título é o que indica: inspirar-se no poeta maior da cultura portuguesa para urdir a produção contemporânea em língua portuguesa feita em Portugal, no Brasil, em África, na diáspora. Uma enorme missão.
“O nome Pessoa sempre foi uma homenagem, por entender ser o epíteto que atravessa a produção contemporânea da literatura não só portuguesa, mas em português, dos escritores de Portugal, Brasil, Angola, das Guinés, de Moçambique, Cabo Verde e espalhados pelo mundo. Nunca tivemos a pretensão de ser uma publicação pessoana nem de nos apresentarmos como herdeiros de sua obra. O que nos une a Pessoa é o seu caráter sensorial, de interagir com outros sentidos”, explica.
“O nome Pessoa sempre foi uma homenagem, por entender ser o epíteto que atravessa a produção contemporânea da literatura não só portuguesa, mas em português.”
Mirna Queiroz.
A urgência em interagir com outros sentidos também levou Mirna a trotar o mundo.
“Sempre fui assim. Fiz até terapia para tentar me entender, mas não tive respostas. Desde pequena, sabia que iria viver fora do Brasil. Aos dez anos, enviei uma carta à Embaixada da África do Sul pedindo informações sobre o país. E o genial foi que me responderam! De certa forma, esta curiosidade me levou ao jornalismo, o desejo de treinar a minha escuta, de ouvir as pessoas”, revela.
As redações, porém, pareciam não saciar tamanha curiosidade. Em 1993, Mirna pediu ao chefe para demiti-la e decidiu investir o valor da rescisão para realizar o sonho de um tour pela Europa. O que seria apenas um curto período sabático entre empregos estendeu-se por 15 anos, tendo como primeira paragem Lisboa, à época um destino minimizado pelos brasileiros. “Cool era ir para a França ou Inglaterra. Havia um profundo desprezo por Portugal, mas para mim, bisneta de portugueses, fazia todo sentido iniciar uma viagem pelas minhas origens.”
Retorno às origens e “salada” genética
E quando Mirna fala em viajar pelas origens, não está a brincar. Este ano, descobriu que, geneticamente, é 52% portuguesa. A confirmação foi feita por dois laboratórios dos Estados Unidos, através de exames realizados pelos correios. “Primeiro, enviaram um cotonete para que passasse nos lábios. Depois, um copinho para que eu cuspisse”, conta, divertindo-se com o método. O resultado em ambos revelou uma “salada genética” entre registos austríacos e indígenas no seu ADN, e confirmaram predominância lusa. “Acho importante buscar por nossas origens. Se não é possível conhecer o futuro, resta-nos ir para trás”, resume.
Em 1993, Mirna ainda não havia cuspido nos copinhos dos laboratórios, mas mesmo assim a ligação com Portugal já fazia todo o sentido. Foram seis anos a viver em Lisboa, até ser assombrada pela antiga necessidade de ouvir vozes diferentes. Estudou inglês em Canterbury, arte em Florença e trabalhou como correspondente da BBC Brasil em Bruxelas. O trabalho como jornalista trouxe-a de volta a Lisboa por mais um ano e, mais tarde, o casamento com um funcionário do serviço diplomático levou-a de volta ao mundo, desta vez para mais longe, para Singapura, nova escala em São Tomé e Príncipe, num périplo de seis anos,
E depois, de volta a São Paulo.
Pessoa em revista e em festival
O retorno à origem das origens foi marcado pela criação da Revista Pessoa, uma forma de colocar na liquidificadora as experiências vividas. Apesar da capa de publicação literária digital, a iniciativa tem no âmago o desejo de “cobrir e discutir o contemporâneo”, nas palavras da criadora. “A Pessoa, mais do que uma publicação literária, tem sido uma revista de ideias que gravitam na órbita da literatura”, explica.
Por estar sediada em São Paulo, a revista naturalmente sempre contou com mais colaboradores e leitores do Brasil, o que impôs um forte sotaque brasileiro ao projeto. Um detalhe que para ela está por trás da falta de uma interação plena com os portugueses, para além da constante desconfiança em ser uma brasileira a gerir um produto batizado com o nome de um ícone português. Um obstáculo que
Mirna pretende suplantar agora, em sua nova estada lisboeta.
“A Pessoa, mais do que uma publicação literária, tem sido uma revista de ideias que gravitam na órbita da literatura.”
O primeiro passo foi dado em 2019, quando trouxe para Lisboa o The Pessoa Festival, uma iniciativa nascida em Nova Iorque – e que, apesar originalmente ser norte-americana, ao contrário da Pessoa não lidou com críticas de se apropriar da “marca” Fernando Pessoa.
Atenta aos detalhes, Mirna escolheu como sede do evento o Lisboa Pessoa Hotel, não apenas pelo nome, mas pelo prédio estar no mesmo sítio onde funcionou a Tipografia Comércio, que imprimia os exemplares da Orpheu, a mítica publicação modernista que teve o próprio Fernando Pessoa como colaborador e que, assim como a revista digital que leva hoje o nome dele, era um empreendimento editorial luso-brasileiro.



O festival recebeu entre os convidados Clara Rizo, a diretora da Casa Fernando Pessoa, o que para Mirna serviu como a mensagem o de que qualquer eventual mal-entendido sobre o assunto estava definitivamente encerrado. “Adorei o gesto dela em ter ido ao evento. Tivemos a oportunidade de conversar e deixar claro a vocação da revista era inspirar-se em Pessoa, em homenageá-lo, nunca de ser o representante do seu nome ou da sua imagem”, disse.
Outra iniciativa de conexão da Revista Pessoa com escritores e leitores portugueses e africanos vem de uma parceria com o Literarisches Colloquium Berlin Diplomatique (LCB Diplomatique), onde Mirna é responsável pela curadoria dos nomes convidados a participar do projeto, enquanto o parceiro tedesco cobre os custos com o cachê destinado aos autores e a tradução dos textos para o alemão e inglês.
“Penso que a aproximação da Pessoa com outros destinos e públicos da língua portuguesa será gradual, mas inevitável. Mas também acredito que é preciso uma iniciativa dos pensadores, intelectuais e autores portugueses e africanos em ocupar a revista e propor o debate”, ressalta.
Novo empreendimento com ADN português
Em 2020, a aproximação gradual com os portugueses ganhou um novo reforço, a Casa Mombak, um espaço de produção de conhecimento e debate registado em Portugal e situado no coração de Lisboa, no Palácio Verride, no bairro da Bica. Um misto de cristalização das ambições virtuais da revista e da oportunidade de iniciar um empreendimento com ADN português a partir do zero. “Nos últimos anos, pensei que seria importante adicionar outras sensibilidades à Revista Pessoa. A partir daí surgiu a necessidade de construir algo mais amplo”, explica.
Da parceria com o norte-americano e curador do The Pessoa Festival, Eric Becker, Mirna aprendeu que uma sinergia bem-feita é capaz de abrir portas. O parceiro agora é o holandês Kees Eijrond, dono do Palácio Verride, que recebeu o projeto como hóspede do seu luxuoso hotel. “O Kess vive há 20 anos em Lisboa, cidade que o acolheu de uma tal forma que agora ele pretende deixar um legado, não só material, mas imaterial. E viu na Casa Mombak a oportunidade de concretizar isto”, conta.

O espaço abriu as portas no segundo semestre de 2020, ainda restrito pela pandemia, com apenas dez alunos presenciais. Entretanto, o segundo confinamento, no início de 2021, travou quaisquer atividades presenciais e a bela casa, vizinha ao Palácio Verride e com vista para o Tejo, aguarda, mergulhada na quietude e no silêncio, pelo retorno dos convidados.
Enquanto isso, Mirna atua em outras frentes e, como a curadoria de uma das faixas de programação da primeira edição internacional do Ronda – Leiria Poetry Festival, que acontece agora em março.
“A ideia é continuar a fazer o que mais gosto, seja à frente da Mombak ou como profissional independente: articular a associação entre agentes culturais de origens diversas. A convivência está no cerne do Mombak e só irá arrancar plenamente quando tudo passar. Vamos seguir no passo possível, para que saia como deve ser, sem contratempos”, diz, ciosa de que para fazer um desejo girar, assim como a chávena que tem nas mãos, é preciso confiar, acima de tudo, no tato.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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