Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
Em 1964, tinha 22 anos, andava na Universidade, curso de História, escrevia para jornais e revistas, era dirigente do ABC Cine Clube de Lisboa, colaborei na antestreia de “Belarmino”, realizada no desaparecido cinema Avis, onde o cine clube dava as suas sessões.

Para além disso, adorava a noite de Lisboa, os serões passados em tertúlias nalguns cafés, como o Vavá, o Monumental e o Monte Carlo, entre tantos outros, as idas ao Parque Mayer ver as revistas e as atrizes e as coristas, a paixão pelo cinema e pelo teatro, e pelos jornais e as redações, o gosto de ler, sempre de livros debaixo do braço, para onde quer que fosse.
Uma noite, na reduzida esplanada do café Lisboa, na avenida da Liberdade, ali em frente ao Parque Mayer, sentado a uma mesa, a bica à minha frente, lendo um livro, sou abordado por uma prostituta, uma das muitas que por ali abundavam a essas horas da noite. “Filho, vamos?”. A senhora em questão teria para cima de 50 anos, um olhar triste e desalentado, e respondi-lhe com tristeza: “Não, querida, não quero”. “Então, paga-me um galão”. “Senta-te e manda vir o galão”. Assim foi, um galão e uma sandes, que a fome apertava. E lá ficamos a falar durante um bom bocado.
Que a vida estava má, que com aquela idade já não tinha muitos pretendentes, que eu fazia bem em não alinhar naquelas coisas (e disse-me, certamente para “pagar” o galão e a sandes: “És tão bonitinho que não precisas de andar com mulheres da vida”). A verdade é que nunca alinhei “naquelas coisas”, mas devo confessar que sempre senti simpatia por essas “profissionais do sexo”.

Naquele tempo, havia muitas “casas” mais ou menos ilegais, mas toleradas. Tinha alguns colegas de faculdade que eram clientes regulares e eu por vezes acompanhava-os. Ficava na sala, olhando os clientes que entravam ofegantes e saíam saciados e as senhoras que se ofereciam, claro que era algo excitante, mas nunca alinhei “naquelas coisas”, sabe-se lá porquê. O pecado e o vício são apelativos, enquanto transgressão. Numa sociedade aparentemente tão bem-comportada e tão puritana, apetecia conhecer o outro lado da noite.
Por isso se compreende como o filme “Belarmino”, de Fernando Lopes, foi tão importante como retrato de um submundo que emergia dessa realidade oficial que tudo tentava controlar e celofanizar. Claro que nem só de transgressões se vivia por aqueles dias cinzentos.
Lembro-me, por exemplo, uns anos antes, a escritora Odette de Saint-Maurice, reunir em sua casa, nas tardes de sábado, um conjunto de jovens que ela acreditava terem talento em diversas áreas da cultura e agrupá-los em redor de chá e algumas guloseimas para falar de literatura, cinema, música, teatro, enfim de cultura.
Imaginem só quem por ali encontrei e de quem me tornei amigo para a vida: António Victorino d’Almeida, João Mota e a irmã, Teresa Mota, Guida Maria, Maria Armanda de Saint-Maurice Ferreira Esteves, filha da dona da casa, entre alguns mais. As três miúdas dessa tertúlia seriam actrizes talentosíssimas: a Guida Maria no “O Milagre de Anne Sullivan”, a Maria Armanda Passos, como era conhecida, em “Diário de Anne Frank”, a Teresa Mota, que seria protagonista de “Romeu e Julieta” no teatro e intérprete de “Raça”, filme de Augusto Fraga.
Neste desfiar de memórias ligadas a Lisboa, a minha cidade, e recordando a Guida Maria, e as prostitutas da avenida da Liberdade, alguns anos depois, andava eu a preparar as filmagens de “O Vestido Cor de Fogo” quando encontrei a atriz num jantar, na “Casa da Comida”, do nosso amigo comum Jorge Vale, e, em conversa, ela me confidenciou o seu desgosto por só a convidarem para papéis de princesinha. Ao que lhe respondi: “Já tenho todo o elenco escolhido, mas se quiseres fazer de puta, abro uma exceção. Até sou capaz de criar uma personagem só para ti”. Assim aconteceu.
O protagonista passou a passear pela avenida da Liberdade e foi interrompido por uma prostituta que o aborda. Guida Maria, numa curta aparição, mas marcante. A história tem, contudo, contornos mais curiosos: a filmagem era à noite, mas umas horas antes fomos para a avenida, eu abordei uma “profissional” que por ali já andava e fomos todos para umas escadas, num edifício de uma das ruelas transversais, onde a “profissional” ensinou à neófita os segredos da profissão. A maneira de colocar a perna, o olhar, a frase para a abordagem, enfim, o essencial para a efémera conquista. Não sei como o transeunte, protagonista do meu filme, conseguiu seguir em frente, mas estava escrito que assim seria no guião.
Portugal era um país cinzento, realmente. A ditadura era uma realidade e a censura todos a sentíamos. Havia apontamentos de um ridículo extremo. Quem fala hoje em dia de corrupção e atira com os tempos do Estado Novo como exemplares, imaginem só isto: um dia fui multado e preso, conduzido à esquadra que se situa por detrás do Teatro D. Maria, por ter acendido um cigarro com um isqueiro. Para se ter isqueiro, era necessária uma licença. Porquê? Para proteger os interesses do monopólio da Fosforeira Portuguesa.
Os monopólios eram às dúzias a defender os interesses dos capitalistas situacionistas. Era um estado tão novo que a corrupção estava regulamentada por decreto. Depois havia os pobres diabos como Belarmino, que podiam ser, mas não foram, e que morrem atropelados a atravessar uma avenida em Almada.

Sobre “Belarmino”
Este é um filme sobre um pugilista português que poderia ter sido e não foi um grande nome no desporto internacional e acabou por ser uma espécie de lenda no quotidiano lisboeta.
O genérico inicial, de Mário Neves, sobre fotografias do pugilista, da autoria de Augusto Cabrita (que é também, e sobretudo, o director de fotografia do filme, num magnífico preto e branco), coloca o espectador perante o tema central: um homem, português, trinta e tal anos, com passado de pugilista e futuro incerto. Um rosto rude, um sorriso amargo, uma expressão entre o simpático e o duro. Anos 60 do século XX em Portugal. Sob a ditadura de Salazar.
Um filme cinzento, sobre uma personagem frustrada, num país sem perspectivas, mas com esperança. O filme irá terminar com as palavras de Belarmino Fragoso: “Vou ser treinador, ensinar muitos futuros campeões”. Alguém acredita?
“Belarmino” é um dos primeiros filmes produzidos por António da Cunha Telles no início da década de 1960 e que estiveram na origem do que se chamou “Novo Cinema Português”. Anteriormente, tinha aparecido “Verdes Anos”, de Paulo Rocha, que devia muito à Nouvelle Vague francesa.
“Belarmino” está mais ligado ao Free Cinema inglês, o que se compreende pela própria personalidade do autor e, sobretudo, pela sua formação profissional em Inglaterra, na London Film School, onde contactou com o documentarismo britânico dos anos 30/40, com o eclodir do Free Cinema, com o novo cinema independente norte-americano, nomeadamente John Cassavetes. Um cinema mais próximo do neorrealismo, dos problemas sociais.
Assente numa longa entrevista conduzida pelo jornalista e escritor Baptista Bastos, esta foi a base de partida para o filme. Depois de algumas imagens recolhidas no ginásio do estádio do Sporting Clube de Portugal, Baptista Bastos, em off, anuncia: “Podia ter sido um grande pugilista, dos melhores da Europa, talvez até campeão dos meios leves e agora é quase um punching ball: Belarmino Fragoso”. Assim se parte em busca de um homem, de uma personagem e de uma certa Lisboa de inícios dos anos 60.
O filme é sobre um homem, mas também sobre uma cidade, sobre um tempo, sobre um estado de espírito. Belarmino Fragoso foi pugilista, mas antes, durante e depois exerceu sempre outras ocupações: engraxador, segurança à porta do “Bolero Bar”, guarda-costas, colorizador de fotografias, além de vadio e boémio, “flaneur” dos pobres nas ruas e avenidas de Lisboa, catrapiscando miúdas, dançando ao som de boleros no Ritz Club, deambulando pela Barros Queiroz e as Portas de Santo Antão, pelos Restauradores e o Rossio, parado à porta dos “piolhos”, do Galo e das sessões permanentes, ou do Salão Lisboa, do Eden, onde se exibe “O Miúdo da Bica”, sempre com o olhar nas garinas, apesar da mulher e das filhas que ele não se cansa de elogiar (Maria Amélia, a mulher, Ana Paula, a filha que vivia com ela).
Engraxava na avenida da Liberdade e aprendeu a fugir aos polícias, enquanto declara que “boxe e graxa é tudo a mesma coisa”. “Fui para o boxe por necessidade. Homens como eu, vadios”, e sorri comprometido. Ou orgulhoso? “Fome, fome, não era bem fome, não foi fome de três dias, era mais uma fraqueza razoável”. Foi combater com uma bola de Berlim e um galão, depois de uma noitada até às quatro da matina. “A noite era nossa”, confessa com entusiasmo. Quando lhe perguntam se é analfabeto, nega: “Já tenho a terceira classe!”. Sempre a arte da esquiva, da evasiva, da fuga ao soco do adversário. Gingão, bailarino, a andar e no ringue, na vida e na morte (atropelado numa rua de Almada, aos cinquenta e poucos anos).
Acusa o manager, Albano Martins, de ser um explorador e este recusa o epíteto. Refuta, por outro lado, a acusação de “chiqué”, de ter sido comprado em combate. As mentiras e as verdades de um pugilista que poderia ter sido grande, mas não foi. Em paralelo, passam imagens do Hot Club, com jazz, o saudoso Villas Boas, e o swing de Manuel Jorge Veloso e outros músicos. “A noite é nossa”, numa Lisboa cinzenta, aqui são as raparigas que fazem olhinhos ao instrumentista.
Belarmino, Lisboa, Portugal início dos anos 60. Como disse O’ Neill, “Tiveste jeito, como qualquer de nós, / e foste campeão, como qualquer de nós”.
BELARMINO
Título original: Belarmino
Realização: Fernando Lopes (Portugal, 1964); Argumento: Fernando Lopes; Produção: António da Cunha Telles; Música: Justiniano Canelhas, Manuel Jorge Veloso; Músicos de jazz: António D. Silva, Milou Struvay, Maria Van Zeller; Fotografia (p/b): Augusto Cabrita; Montagem: Manuel Ruas; Assistente de montagem: Emília de Oliveira; Design de produção: Fernando Lopes; Direcção de Produção: António da Cunha Telles; Assistentes de realização: Fernando Matos Silva; Departamento de arte: Mário Jorge da Silva Neves; Som: Alexandre Gonçalves, Heliodoro Pires; Efeitos especiais: Mário Jorge da Silva Neves; Camara e luz: Manuel Cunha da Silva, Carlos Manuel da Silva, Manuel Carlos da Silva Fernando Gomes, Elso Roque; Companhias de produção: António da Cunha Telles; Intérpretes: Belarmino Fragoso (ele próprio), e ainda Jean Pierre Gebler, Maria Teresa de Noronha, Bernardo Moreira, Júlia Buisel, Maria Amélia Fragoso, Ana Paula Fragoso, Tony Afonso, Baptista-Bastos, Albano Martins, Luís Carlos Villas-Boas, etc. Duração: 80 minutos; Distribuição em Portugal: Madragoa Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 18 de Novembro de 1964.
*Lauro António é realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema.
Excelente comentário, parabéns. Fez-me viajar no tempo. Sou uns anos mais jovem, em 1964 ainda andava no liceu, mas tudo aquilo que escreveu tem significado para mim.
Fui “extra” num filme de Ernesto de Sousa, o “Dom Roberto”, salvo erro feito em 1961, com Raul Solnado, Glicinia Quartin, Luis Cerqueira e outros. Passados mais de 50 anos voltei ao lugar onde tinham sido filmados os exteriores, o “Pátio dos Quintalinhos” na Calçada do Livramento em Alcântara e hoje é …. parque de estacionamento, um sacrilégio
Obrigada pela viagem.